ALMOÇO Os escravos, mesmo as crianças, eram “mediocremente alimentados”
ALMOÇO Os escravos, mesmo as crianças, eram “mediocremente alimentados”

Se não tivesse havido Warteloo para Napoleão, não teria existido Debret para o Brasil. A fragorosa derrota de Napoleão Bonaparte nessa batalha, em 1815, contra os exércitos da Inglaterra e da Prússia, significou no campo das artes uma irreversível perda para os neoclássicos – Napoleão dava-lhes o tom ideológico nas tela e punha-lhes o dinheiro no bolso. Fácil compreender, portanto, por qual razão Jean-Baptiste Debret e demais artistas, que se alinharam com os jacobinos à época da Revolução Francesa, passaram a apoiar e a admirar a restauração da monarquia. Para Debret, particularmente, esse momento histórico foi ainda mais doloroso porque coincidiu com a morte de seu filho. Entristecido e deprimido, ele viu então com bons olhos o convite que lhe fizeram para rumar à Rússia em companhia do renomado arquiteto Grandjean de Montigny. Mais interessado, ainda, ficou quando soube que uma missão francesa viria ao Brasil. Ele se incorporou a ela, e houve uma troca perfeita: a Coroa portuguesa acenava-lhe com o prestígio de ser o pintor oficial da Corte, e tudo que Debret queria era deixar a sua Paris de más recordações.

Quis assim o destino – vale dizer o fracasso napoleônico – que pisasse no Brasil aquele que foi um de seus melhores e mais completos historiadores, retratando e traduzindo em telas e textos a nossa realidade a partir de 1816, quando aqui desembarcou e passou a morar no Rio de Janeiro. Por meio da arte de Debret ganhamos a monumental obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, primoroso espelho dos últimos anos do período colonial e do início do Brasil independente. A sua edição francesa é de 1835, outra infinidade veio à luz ao longo do tempo, e sempre a mostrar a abrangência e universalidade do autor. Prova disso é que uma nova edição acaba de ser lançada no Brasil (editora Imprensa Oficial, 652 págs., R$ 260) e, como nas anteriores, ainda há o que descobrir no olhar do artista. Se a Coroa de Portugal imaginou que Debret se restringiria a cumprir ordens e pintar o dia a dia do Rio de Janeiro, numa exaltação à Corte, é porque não conhecia bem o seu ideário libertador. É sobejamente sabido que sua obra tem forte conteúdo social. O surpreendente, no entanto, é que essa cuidadosa nova edição consegue radicalizar nesse olhar e na seleção de telas, mostrando-nos um Debret, republicanamente, preocupado com a desigualdade social e racial entre o senhor português, e portanto branco, e o escravo negro. É como se surgisse em sua obra a denúncia dessa situação. Debret fez, sem dúvida, o trabalho que lhe encomendaram de retratar o Brasil, mas o realizou como hoje se fotografa a Amazônia, por exemplo, para apontar a sua devastação. “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” é um documento de época, e ao lado da perfeição estética há a motivação social. Esse é um dos pontos centrais bem acentuados na recém-lançada edição. Vale destacar no texto a condenação que Debret faz de seus mecenas em relação à permissão dada aos açoites públicos. E chega a escrever que os colonos “alimentavam mediocremente” os escravos e os índios.

Debret não teria existido para o Brasil se não tivesse havido Waterloo para Napoleão
Debret não teria existido para o Brasil se não tivesse havido Waterloo para Napoleão

Digamos que dom João VI preferisse uma viagem somente pitoresca de Debret pelas ruelas do Rio de Janeiro e que o artista tenha cismado de acrescentar, por conta própria, a porção histórica. É possível abrir essa trilha de raciocínio e interpretação ao lembrarmos que o primeiro volume da obra, que trata especificamente dos índios, foi acolhido e editado no Brasil pela Biblioteca Imperial, mas sob um manto de desconfiança e uma decisão tomada a priori: o segundo tomo, que exibiria escravos e colonos, não ganharia impressão. Debret teve então de arcar com o injusto e absurdo rótulo de caricaturista, ele que foi um dos melhores artistas a pisar o solo brasileiro. O motivo estava mais que claro: Debret não pintara cenas muito edificantes para a elite brasileira. Admirado e respeitado sempre pela sua impecável técnica, a questão a jogar o artista a um segundo plano foi sempre a sua “coragem sociológica”. O começo da redenção se deu com o advento do Modernismo, quando “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” foi traduzido do francês para o português por iniciativa do escritor e aristocrata Paulo Prado, autor de “Retrato do Brasil” (o trabalho foi executado pelo crítico de arte Sergio Milliet). A edição que acaba de desembarcar nas livrarias dá o aval definitivo a um Debret que, além de exímio artista, foi um dos primeiros e bem rigorosos críticos de nossas mazelas sociais.