BIOLOGIA Experiente no trabalho de campo, Paulo Câmara, da UnB, terá seu trabalho com microorganismos apresentado às autoridades: intenção é manter financiamentos abertos (Crédito:Marcelo Jatobá/Secom/UnB)

Após sete anos, o Brasil vai retomar para valer as pesquisas na Antártida, com a entrada em operação da nova Base Comandante Ferraz, instalada nas águas abrigadas da Baía do Almirantado, na Ilha Rei George, a cerca de 130 quilômetros da península onde começa propriamente o continente gelado. Com o dobro do tamanho das instalações anteriores, a base vai funcionar como um centro de pesquisas voltado para as áreas de microbiologia, medicina, climatologia, química atmosférica, oceanologia, glaciologia e ecologia. Em um momento em que a pesquisa científica sofre com cortes de verbas, a modernidade de seus 17 laboratórios são um sopro de esperança para cientistas brasileiros — e de outros países. A Agência Internacional de Energia Atômica, um órgão das Nações Unidas, vai desenvolver projetos no local. Ao lado deles estarão cientistas da Fiocruz, UnB, UFMG e USP. A base é uma das três mais modernas e seguras do continente gelado, que, sem exagero algum, pode ser considerado o lugar mais inóspito do planeta, com temperaturas de até -40ºC, ventos que atingem facilmente 160 km/h e um mar repleto de icebergs e placas de gelo que ameaçam os navios polares que por ali navegam.

DNA perdido

Coordenada e mantida pela Marinha do Brasil, a estação custou quase US$ 100 milhões (R$ 406 milhões), vai exigir US$ 24,5 milhões anuais para sua manutenção e será inaugurada na terça-feira 14, diante de autoridades e políticos. Depois, só ficarão pesquisadores e militares por ali. O lugar tem algo de futurista para quem desembarca ou pousa de helicóptero na paisagem desolada. Erguida três metros acima do solo, parece um terminal moderno de aeroporto, com linhas curvas e suaves para atenuar o vento furioso. Um forte contraste com os antigos contêineres interconectados da base anterior, devorada por um incêndio que vitimou dois militares em fevereiro de 2012. Para minimizar o risco de um novo desastre, o projeto deu ênfase à segurança, com alarmes, sensores, portas corta fogo e painéis que resistem a altas temperaturas nas salas de geradores.
A concepção é do Estúdio 41, de Curitiba, chefiado pelo arquiteto Emerson Vidigal, com execução a cargo da China Eletronics Corporation, já que nenhuma empreiteira brasileira se mostrou interessada ou capacitada. Por causa das condições climáticas, as equipes de montagem tiveram que se revezar durante três verões, a partir de 2017. Todo o material veio de barco. “Não dá para compreender a complexidade do que fizemos sentado em uma cadeira lá no Brasil”, explica o contra-almirante Sérgio Guida, gerente do Programa Antártico Brasileiro, o Proantar. Sob sua coordenação estão mais de 250 pessoas, desde o roupeiro que prepara os trajes térmicos no Rio de Janeiro até os oficiais comandantes dos navios polares Almirante Maximiliano e Ary Rongel.

“A retomada das pesquisas de campo vai impedir a fuga de cérebros na ciência brasileira” Contra-almirante Sérgio Guida, chefe do Proantar (Crédito:Divulgação)

Para os pesquisadores, as vantagens serão grandes. Além de mais conforto, com salas de ginástica, transmissão de dados de alta capacidade e facilidade de comunicação com o mundo exterior, os cerca de 250 pesquisadores que poderão transitar ali a cada verão antártico não dependerão exclusivamente do envio de material para o Brasil. Parte dos microorganismos coletados será analisada nos laboratórios locais, assim como o cruzamento de dados meteorológicos. Um dos temas mais instigantes para os pesquisadores é descobrir os efeitos da presença de partículas atmosféricas carregadas pelas correntes de ar a partir de outros continentes. Os pesquisadores Paulo Câmara, da UnB, e Luiz Rosa, da UFMG, estão entre os mais respeitados no Proantar. Eles analisam o DNA de microplantas e fungos antárticos com possíveis aplicações na produção de antibióticos — por se tratarem de organismos que evoluíram isolados do resto do mundo.

Antes, muito material se perdia. “Coletávamos amostras, testávamos e tínhamos que ver se a energia não caía, se as tomadas estavam adaptadas”, conta o biólogo Paulo Câmara, veterano da Antártida. Os resultados das pesquisas mais recentes, feitas em grande parte nos navios polares, durante o período precário da reconstrução do centro, serão mostrados às autoridades em uma apresentação na base.

Fuga de cérebros

Há uma estratégia deliberada no evento. Como o custo da manutenção da base é fixo, o peso dessa conta se diluiria quanto mais pesquisas forem realizadas ali daqui para frente. É uma tentativa dos próprios militares de manter abertos os financiamentos científicos, que na maior parte do tempo se dão dentro das universidades e envolvem um número grande de profissionais — a maioria deles jamais pisará na Península Antártica. O maior problema das pesquisas no Brasil hoje não é, necessariamente, o enxugamento das verbas, mas sim a falta de periodicidade. Editais que deveriam ocorrer a cada três anos acabam saindo a cada cinco ou seis, obrigando doutores a espremer seus orçamentos além do limite plausível, enquanto seus colegas avançam. A outra alternativa é ir trabalhar em instituições estrangeiras, levando embora o cabedal adquirido aqui com dinheiro público (ainda que miúdo), sem deixar benefícios às instituições e à sociedade. “A retomada das pesquisas de campo vai impedir a fuga de cérebros na ciência brasileira”, afirma o almirante Guida, que vê a questão como de soberania. Não se trataria de ocupar territorialmente um trecho da Antártida, já que o Brasil é signatário do acordo que proíbe a exploração do sul do mundo, mas de manter as portas abertas ao conhecimento e à cooperação científica internacional.

Veja imagens da base da Marinha na Antártida