Para nós, brasileiros, é quase uma heresia. Mas que audácia a desses suíços rejeitarem, em plebiscito, a adoção de uma lei que concederia a cada cidadão do país – empregado ou desempregado – uma renda mínima mensal equivalente a R$ 9 mil. Isso aconteceu na semana passada – e o mundo, surpreso, pôs-se a debater o por quê.

No Brasil do Bolsa Família (que equivale, em média, a 2% do auxílio recusado por uma esmagadora maioria de 77% da população da nação alpina) e das carências sem fim, é inimaginável pensar em dizer não a qualquer ajuda. Para o mundo, ficou aparente que os suíços consideram impensável viver às custas do governo, que já lhes oferece, como retorno pelos impostos pagos, serviços públicos de qualidade, uma sociedade mais igualitária e baseada no respeito, num exemplo bem acabado do chamado Estado do bem-estar social. A despeito de a economia não viver seus melhores momentos, a taxa de desemprego na Suíça se mantém em 3,5%, menos da metade da média eruopeia. O país vive uma estabilidade quase insuportavelmente monótona para os nossos padrões. A julgar pelo resultado do referendo, votar não à renda mínima foi a maneira de eles dizerem que em time que está ganhando não se mexe, principalmente se essa mudança implicar a geração de uma conta alta, com potencial de desequilibrar as finanças locais.

Talvez haja outras razões menos claras para a decisão. Com a proposta, o antigo paraíso fiscal se propunha a mudar de rótulo, vendendo-se ao mundo como paraíso social. Pretendia ser vista como a vitrine de um novo modelo de desenvolvimento em que, resolvidas as questões básicas de sobrevivência, os cidadãos se dedicariam a ser felizes, a buscar realização profissional e a realizar seus sonhos. Para os defensores da proposta, a bolsa felicidade geraria, por si só, uma intensa atividade econômica e, em um país com menos demandas sociais ainda pendentes, poderia até se tornar autossustentável. O mesmo conceito tem sido discutido em outras nações com alto índice de desenvolvimento social, como a Finlândia – onde um programa piloto que oferece renda mínima de 550 euros (pouco mais de R$ 4 mil) a 10 mil cidadãos está sendo testado e, se bem sucedido, pode ser adotado para toda a população – ou a Holanda – cidades como Utrecht já praticam o modelo experimentalmente.

O conceito de que é função do Estado proporcionar felicidade, mais do que riqueza, avança numa parte do mundo em que a maioria das pessoas sequer discute quais são os seus direitos. De tão respeitados, eles nem precisam ser lembrados. O que os suíços talvez tenham entendido nas discussões sobre a proposta de renda mínima é que felicidade não se compra e que os mesmos recursos que financiariam esse novo benefício talvez fosse mais bem aplicado se usado na solução de outras questões mais inquietantes. Por trás da aparente tranquilidade, muitas nações ricas se deparam com crises de consciência e dilemas internos. Vejamos o exemplo da própria Suíça. Boa parte do bem-estar oferecido a sua população tem origem em um sistema bancário alimentado pela corrupção e por regimes que semearam a desigualdade mundo afora. A histórica neutralidade em conflitos internacionais contribuiu para esse cenário. Hoje, as autoridades e os financistas do país são pressionados a rever suas posições, a adotar políticas de transparência e a devolver aos lesados a riqueza encastelada aos pés de seus picos nevados.

No mesmo dia em que a maioria dos suíços disse não, uma outra decisão interna revela que há mesmo muitas questões a serem resolvidas por lá. Os residentes de Oberwil-Lieli – cidade de 22 mil habitantes, 300 deles listados como milionários – decidiram que o município deveria pagar ao governo da Suíça uma multa superior a R$ 1 milhão como pena por não aceitar a  instalação, ali, de apenas dez dos 50 mil refugiados que pediram asilo ao país. A alegação para a recusa foi a de que “eles não iriam se encaixar”. No resto do país, a decisão causou revolta e reflexão. Ao rejeitarem a renda mínima, muitos suíços podem ter, na verdade, encontrado uma forma de declarar “ainda não merecemos ser vistos como um paraíso social”.

Luiz Fernando Sá, diretor de Mídias Digitais e Projetos da Editora Três