O preto Luís Gama foi, principalmente, advogado, escritor e jornalista. Exerceu o seu papel maior na vida pública e na política brasileira como grande líder abolicionista. Antes disso, e ainda como simples rábula, defendeu na Justiça centenas de escravizados e os livrou dos grilhões. Luís Gama era baiano, nasceu de mãe negra liberta e pai branco, que o vendeu, aos dez anos de idade, como escravo. Autodidata, aprendeu a ler e escrever somente aos dezessete e conseguiu a proeza de conquistar judicialmente a própria alforria. A porção elitista da crítica literária pátria o ignorou por considerável período de tempo, mas hoje o seu nome é tido como um dos expoentes do romantismo. Dois ideais apadrinharam sua alma, e por eles Luís Gama batalhou com inteligência e incessante ímpeto: a abolição e a causa republicana. Morreu em 1882 sem vivenciar nem uma coisa nem outra. O seu nome está no memorial cívico denominado Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

A branca princesa Isabel, filha do imperador dom Pedro II com Teresa Cristina, nasceu no Rio de Janeiro em 1846. Teve o melhor dos estudos e herdou do pai a paixão pelos livros e pela arte de ensinar. Herdou também a aversão à escravatura, com uma diferença: Pedro II a desejava retirá-la do nosso chão de forma gradual, já sua filha queria bani-la o quanto antes – Isabel soube se valer dos próprios interesses financeiros dos grandes latifundiários para convencê-los de que a abolição era um passo importante a garantir-lhes a não guinada radical do establishment. Em 1871, quando seu pai e sua mãe embarcaram para a Europa, ela permaneceu no Brasil como regente e com plenos poderes para tomar decisões, redigir leis e governar. Em seu íntimo, Pedro II torcia para que o Visconde do Rio Branco, na presidência do Conselho de Ministros, exercesse de fato o poder. Vã torcida, até parecia que não conhecia a filha que tinha. Apenas quatro meses após a partida dos genitores, ela assinou em setembro a Lei do Ventre Livre – preto que nascia não seria escravizado. Aí ela teve mesmo de dar tempo ao tempo, mas em 1888 sancionou a Lei Áurea extinguindo pelo menos formal e legalmente a escravatura no Brasil. Foram quase quatro séculos de crime escravagista. O preconceito a pretos segue estrutural.

Vê-se, assim, que tanto Luís Gama quanto princesa Isabel fazem parte da nossa história e entraram nessa galeria com a honra de terem lutado pela democracia racial. Não merecem e não podem, portanto, ficarem atualmente como joguetes de interesses ideológicos, não importando se tais interesses estão à extrema direita ou à esquerda. Em um Brasil em que o preconceito racial se mostra cada vez mais enraizado e atrevido, em que principalmente o preto morador em comunidades é seletivamente visto por alguns policiais como bandido (se estiver desempregado, pior ainda; mas há empregos?), o assunto exige ser tratado com seriedade por governantes. Não pode ser colocado em meio a disputas no campo irreal e nada sincero das ideologias.

Quando era presidente, o autocrata Jair Bolsonaro instituiu a Ordem do Mérito Princesa Isabel no âmbito dos direitos humanos e da igualdade racial – e, embora não admitisse publicamente, é claro que lançou mão do nome de Isabel pelo fato de ela ser branca. Endossa a tese se relembrarmos todo o preconceito com o qual os titulares de pasta, fundações e instituições da gestão bolsonarista trataram o tema. Agora, Lula acaba de revogar essa Ordem do Mérito e criou o Prêmio Luís Gama de Direitos Humanos. E criticou o fato de “um País negro e racista como o Brasil” possuir “um prêmio (…) em homenagem a uma mulher branca”. Com razão, a secretária executiva do ministério, Rita Oliveira, ressaltou que “não se trata de afirmar que uma pessoa branca não possa integrar a luta antirracista”. Ou seja: jogando as pirraças para fora da história, Luís Gama e Isabel merecem nomear prêmios e ordens do mérito.

Bolsonaro jamais esteve ou está preocupado com direitos humanos, tanto que é fã do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Já Lula pensa e age de modo diametralmente oposto: é campeão dos campeões em direitos humanos. O que ele disse é uma migalha se cotejado com suas atitudes: Lula é líder no resgate de trabalhadores em situação similar à escravatura – nos últimos 15 anos, ninguém libertou tanta gente, em três meses, como ele o fez: 918 pessoas. É vital, no entanto, que o preconceito não seja ideologizado pela esquerda, porque para o mal do Brasil e de diversos países já o é pelos supremacistas brancos da extrema direita.