De janela aberta

De janela aberta

A cidade é temida. Em todos os consulados se preparam avisos a seus cidadãos ? de visita ou de residência ? com normas de defesa: não ostente, leve pouco dinheiro, não ande sozinho, feche as janelas, não desperte curiosidade. Ponham grades, ponham grades, ponham grades. Assim alertam os especialistas em proteção pessoal, ao se referirem a certas cidades brasileiras, no caso, ao Rio de Janeiro. A diplomacia do Vaticano deve ser muito ruim, ou o seu chefe de Estado é absolutamente insubordinado. Em sua primeira viagem apostólica, o novo papa ? aquele que se diz do fim do mundo ? viveu uma situação calamitosa, aos olhos escuros dos especialistas formados na escola da paranoia defensiva. Ao chegar ao aeroporto do Galeão, o viajante de branco deu preferência ao mais banal dos carros, aquele tipo casca de ovo, para fazer o seu primeiro percurso até a catedral metropolitana. Foi aí que o impensável, melhor, não tão impensável assim, o que era temido aconteceu. Para pasmo geral, ele (seu motorista, é claro) se perdeu: tomou a avenida errada e se viu imobilizado em um gigantesco engarrafamento. Curiosamente, em vez de ir para o seu palco, livre e desimpedido, caiu em meio à sua própria plateia congestionada. Pânico, suspense, silêncio. O que ele vai fazer? Será que vão cercar o carro com um batalhão de choque? Será que um agente vai se jogar sobre o seu corpo justificando o título de ?guarda-corpo?? Não, nada disso ocorreu. Sua Santidade, para pasmo geral, de janela aberta estava, de janela aberta continuou. E sua atitude em si avisava que não compartilharia de nenhum show bopesco. Deu-se, diriam alguns, um milagre. O que ocorreu, a meu ver, foi uma mudança de perspectiva, ou seja, de paradigma. Em vez de se confrontar ao possível opositor, em vez de dar consistência a ele, se apresentando mais poderoso, por exemplo, dando uma de Sumo Pontífice ? como falou Caetano, do Rei ? Francisco faz um gesto que não atemoriza o agressor em potencial, mas o ridiculariza. Esse é o ponto: vencer pela vergonha, não pelo medo. Mutatis mutandis, comparemos esse exemplo com a resolução da altíssima taxa de criminalidade da cidade de Nova York, no fim nos anos 90. Quando já se tinham esgotados todas as tentativas de dar maior poder repressivo à polícia, também se deu uma mudança paradigmática, muito bem comentada pelo jornalista Malcom Gladwell. Não se tratava mais de fazer a grande e bombástica captura do representante do star system criminoso, mas de despender tempo, paciência, dinheiro, cuidado, homens, em supostas ações menores como a de limpar as pichações dos vagões de metrô, todos os dias, exaurindo os pichadores. A mudança de contexto tem um poder, o Poder do Contexto, que inibe o crime. Em seguida à limpeza dos trens, vieram outras ações de mesma inspiração, todas aparentemente frugais. Essa política foi descrita como ?teoria das janelas quebradas?, por James Q. Wilson, George Kelling e Catherine Coles. Foi difícil convencer aqueles duros policiais de que isso daria certo, ou, mesmo, que só isso daria certo. Se me habituo com uma janela quebrada, também me habituo a duas, a três, e me abro ao menosprezo da cidadania. Alguém poderia perguntar: ?E lá importam janelas quebradas e pichações no metrô? Não seria cuidar só do superficial?? Ficou demonstrado que não. A quem assim pergunta também poderíamos lembrar que um tumor canceroso incomoda muito, mas não mais, por vezes, de que uma farpa debaixo da sua unha. Qual lhe demanda maior urgência? Acrescente-se o aspecto fundamental que o Poder do Contexto se espraia em epidemia. Se uma, e mais outra, e ainda mais outra pessoa envergonha a ação criminal, a partir de pequenas ações, isso se transforma em um vírus social, em uma ação que pode curar uma cidade como se passou em Nova York. O mundo pós-moderno responde a esse novo paradigma. Não às janelas blindadas, mas às janelas abertas.