Acusado de participar de um esquema de desvio e venda ilegal de joias e artigos de luxo da União, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) alega que há um “vácuo” na legislação brasileira sobre os presentes recebidos pelos chefes do Executivo federal por outras autoridades.

A primeira lei que trata do assunto foi publicada ainda em 1991, durante o governo de Fernando Collor. Desde então, o texto foi ampliado pelos governos seguintes e teve o entendimento consolidado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em pelo menos duas vezes. A regra que precisa ser atendida gira em torno do seguinte binômio: uso personalíssimo e baixo valor monetário. Isso significa que os presidentes só podem ficar com os bens considerados de uso pessoal, como camisetas, bonés e perfumes, e que não são valiosos.

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Bolsonaro foi indiciado pela Polícia Federal na última semana pelos crimes de associação criminosa, peculato e lavagem de dinheiro. A investigação aponta que o ex-presidente participou “diretamente” para desviar as joias da Presidência da República e, em seguida, com o apoio de aliados, vendê-las nos Estados Unidos. Os valores foram incorporados ao patrimônio de Bolsonaro em dinheiro vivo, o que pode configurar o crime de lavagem de dinheiro. Os presentes desviados foram avaliados em pelo menos R$ 6,8 milhões.

Em nota, a defesa de Bolsonaro argumenta que os presentes recebidos pelos presidentes da República seguem um protocolo rigoroso de tratamento e catalogação pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), sem influência do Chefe do Executivo.

Em entrevista ao Estadão, em agosto de 2023, Bolsonaro alegou que existe um “vácuo” na legislação. “Até o final de 2021, tudo é personalíssimo, inclusive joia. Dali pra frente pode ter um vácuo. Precisa de uma lei para disciplinar isso aí”, disse o ex-presidente. “A partir de 2022, não está definido o que é personalíssimo. Não quer dizer que seja ou não seja. Fica no ar”.

Bolsonaro faz referência a uma portaria de 2018 que definia joias, semijoias e bijuterias como itens personalíssimos, o que, na prática, não precisaria ser devolvido ao patrimônio público. O texto, de fato, foi revogado em 2021, no seu governo. No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) adotou um entendimento em 2016 que bens valiosos não podem ficar com os presidentes.

Dezembro de 1991 – Lei sobre preservação de documentos

Sancionada pelo então presidente Fernando Collor e o ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, a primeira legislação sobre o tema foi publicada em dezembro de 1991. A Lei Brasileira dos Acervos Presidenciais dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. Nela foi criada a Secretaria de Documentação Histórica da Presidência da República. Sobre os presentes recebidos pelos presidentes, a legislação de 1991 não trata diretamente deste assunto específico, concentrando-se mais na regulamentação e preservação de documentos e acervos.

Agosto de 2002 – Decreto regulamenta os presentes

Decreto publicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) regulamentou o recebimento de presentes pelos chefes do Executivo federal e estabeleceu o que deve ir, ou não, para o acervo privado dos presidentes. De acordo com a regra, “documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes”, como viagens de Estado ou visitas oficiais, pertencem à União. A principal mudança de 1991 para 2002 foi a definição mais clara sobre a natureza pública dos presentes recebidos durante o mandato presidencial, diferentemente da lei anterior que não especificava isso detalhadamente.

Setembro de 2016 – Decisão do TCU sobre presentes de Lula e Dilma

Tribunal de Contas da União (TCU) determina que Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff devolvam à União mais de 700 presentes que haviam sido incorporados ao patrimônio privado de ambos. O TCU entende que somente os itens de caráter personalíssimo (medalhas, por exemplo) ou de consumo próprio (roupas, perfumes, comidas) devem permanecer com os presidentes. Em seu voto, o ministro Walton Alencar acrescenta que presentes valiosos pertencem à União.

Novembro de 2018 – Portaria diz que joias são itens personalíssimos

Portaria publicada pela Secretaria-Geral da Presidência da República durante o mandato de Michel Temer define o que são itens de natureza personalíssima ou de consumo direto. Segundo o texto, são bens que se destinam ao uso próprio do recebedor, a exemplo de condecorações, vestuários, roupas de cama, artigos de escritório, joias, semijoias e bijuterias.

Novembro de 2021 – Governo Bolsonaro regova portaria das joias

A Secretaria-Geral da Presidência da República revogou, em novembro de 2021, a portaria publicada na gestão Temer que definia joias, semijoias e bijuterias como itens de caráter personalíssimo. O novo texto não dispõe um rol do que seria essa categoria.

Março de 2023 – Decisão do TCU sobre relógios de ministros de Bolsonaro

TCU notificou a Secretaria-Geral da Presidência da República sobre a necessidade de ex-ministros de Bolsonaro devolverem relógios de luxo recebidos durante uma viagem oficial a Doha, no Catar, em 2019. Relator do processo, o ministro Antonio Anastasia afirmou que o recebimento de presentes caros extrapola os “princípios da razoabilidade e da moralidade” pública, previstos na Constituição.

Março de 2023 – TCU determina devolução de bens de Bolsonaro

Plenário do TCU determinou cautelarmente que Bolsonaro entregue joias sauditas e as armas presenteadas pelos Emirados Árabes Unidos. O presidente do Tribunal, ministro Bruno Dantas, afirmou que “de acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas desde 2016, para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário”.

Maio de 2024 – Manifestação da área técnica do TCU sobre Cartier de Lula

A área técnica do TCU entendeu que Lula não precisa devolver relógio Cartier avaliado em R$ 60 mil que ganhou de presente durante seu primeiro mandato, em 2005. A auditoria concluiu que presentes de alto valor comercial, mesmo que sejam considerados itens personalíssimos, devem ser devolvidos à União. Mas, no caso de Lula, isso não foi recomendado, pois a área técnica avaliou que o entendimento não pode ser aplicado de maneira retroativa. O documento foi obtido pelo Estadão. Esse processo, contudo, ainda não foi julgado pelo plenário do TCU. A sessão está prevista para agosto.