Será que João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é uma dessas almas ternas que atravessam a vida em busca de amor? Ou será que tem outras ambições?

O presidente Jair Bolsonaro já declarou ter sentido “amor à primeira vista” pelo magistrado. Nesta sexta-feira, seu coração deve estar inundado de paixão. Afinal, Noronha fez coisas lindas por ele e por sua família.

Primeiro, concedeu um habeas corpus a Fabrício Queiroz, amigão do presidente e, ao que tudo indica, operador-mor do esquema de rachadinha que funcionou durante anos no gabinete do filho 01, Flávio Bolsonaro, na Assembleia do Rio de Janeiro.

Como diziam aquelas propagandas de TV, não é só isso. O juiz também beneficiou a mulher de Queiroz, Márcia, que é fugitiva da polícia.

Os dois poderão ficar confinados em casa, e não num presídio.

Se Noronha acredita no amor, não deve esperar nada em troca. No máximo, quem sabe, uma mensagem de Bolsonaro cheia daqueles gatinhos com corações nos olhos.

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Mas talvez ele queira mais. O que poderia ser?

Um daqueles anelões que os moços dão para as noivas, um chuveiro de diamantes, poderia ser mal interpretado pelas autoridades.

E uma vaguinha no Supremo Tribunal Federal, depois da aposentadoria de Celso de Melo, neste ano, ou de Marco Aurélio Mello, no ano que vem?

Pode ser interessante. Nesse caso, Noronha só terá de lidar com a desconfiança de uma parcela considerável da população, de uma parcela considerável dos chamados profissionais do Direito e, esperamos, de uma parcela considerável dos senadores, que precisam aprovar sua nomeação para o STF.

Sabemos que não são obstáculos insuperáveis, mas Noronha precisará fazer algum esforço para justificar suas sentenças em favor de Queiroz e Márcia.

Para liberar Queiroz, ele usou o argumento de que mantê-lo num presídio trazia riscos à sua saúde, por causa do covid-19. Em abstrato, não há nada de errado com a tese. Pelo contrário, muita gente sensata defende a ideia de que presos de menor periculosidade deveriam ser tirados das penitenciárias para prevenir a contaminação pelo coronavírus. No caso de Queiroz, existe ainda o fato de que ele se tratou de um câncer há cerca de um ano.

O curioso é que Noronha contrariou muita gente para chegar a esse veredito. Contrariou a si próprio, para começar. Como publicou a IstoÉ, ele negou em março um habeas corpus coletivo com a mesma fundamentação.

Ele também contrariou a opinião de Bolsonaro, que disse tempos atrás que achava absurda essa história de dar moleza para presidiário por causa da “gripezinha”. Por que duas almas gêmeas como Noronha e Bolsonaro acabariam discordando logo nesse assunto, é um daqueles mistérios do coração. Como dizia Camões, “tão contrário a si é o mesmo amor”…

Finalmente, o presidente do STJ renegou o entendimento de seu colega Félix Fischer, que recentemente manteve na cadeia outro preso que queria sair por causa do vírus. Fischer é o relator do caso de Queiroz, e só não julgou seu habeas corpus porque o tribunal entrou em recesso. Aliás, os advogados de Queiroz esperaram o recesso para entrar com a ação.

Preferiram que ele fosse julgado por Noronha, que já havia anunciado que faria sozinho o plantão do tribunal.

Não estou insinuando nada. Como os advogados poderiam prever essa guinada no pensamento do juiz?


Mais difícil ainda de explicar será o habeas corpus concedido a Márcia. Ela foi liberada para que possa voltar para casa e cuidar do “mozão”. Habeas corpus para uma foragida é daquelas decisões que os juristas chamam de teratológica, ou seja, monstruosa, contrária à natureza.

É muito provável que tudo que Noronha fez seja desfeito daqui a algumas semanas, depois do recesso, quando a ação for julgada pela Quinta Turma do STJ. Aliás, é muito provável também que todo o caso Queiroz saia do tribunal e volte para a primeira instância, de onde saiu recentemente depois de outra decisão esquisita, que bateu de frente com um entendimento já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal.

Com isso, Queiroz e os Bolsonaro terão ganho algum tempo, e nada mais.

Mas deixo aos bolsonaristas, que estão sempre pedindo o fechamento dos tribunais, a tarefa de criticar as incoerências da Justiça neste caso. Não tenho dúvida que serão rigorosos.

Ou não?


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