O novo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ostenta um perfil curioso. Em quatro anos como senador, ele só entabulou sete discursos. Sua característica mais marcante, até então, era uma discrição tão absoluta que o seu nome, quando pronunciado, automaticamente remetia ao baixo clero do Congresso. Foi em silêncio, porém, que ele construiu a vitória contra o célebre vetusto Renan Calheiros (MDB-AL), um dos poucos sobreviventes de uma era em que as velhas e carcomidas prática prevaleciam simplesmente pela força de sua tirania – e pelo grande temor gerado por ela. Enquanto o favorito lançou toda a sorte de tramoias, das mais sórdidas às mais comezinhas, muitas das quais sem qualquer pudor, a céu aberto, o senador de 41 anos do DEM do Amapá preferiu exercitar a boa política. Ao longo das últimas semanas, intensificou o corpo-a-corpo junto a colegas de Senado e, paulatinamente, como se erguesse uma casa, tijolo a tijolo, obteve apoios importantes, como o do oposicionista Randolfe Rodrigues (Rede-AP). “Ele é muito bom nisso, nesse jogo de bastidores”, reconhece Randolfe. Com o auxílio do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), Alcolumbre pavimentou uma estratégia através da qual conseguiu algo que muitos julgavam impossível: superar o execrável Renan que, pela sua capacidade de estar sempre do lado sombrio da força, não raro desfrutou entre seus colegas o epíteto de “Highlander”, numa referência ao personagem vivido em uma série de filmes pelo ator Cristopher Lambert que nunca morre. Renan, ao menos politicamente, morreu.

A BANCADA DO ATRASO Ladeado por Collor e Eduardo Braga, Renan, aos gritos, tentou melar o processo (Crédito:Divulgação)
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“O responsável por isso é você, seu coronelzinho de merda, cangaceiro” De Renan Calheiros a Tasso Jereissati

“Você vai para a cadeia” Respondeu Jereissati a Renan

No caminho trilhado por Alcolumbre pesaram alguns fatores que o aproximaram do espírito do seu tempo, no qual novos métodos se impõem. O recém-empossado presidente do Senado não é exatamente um neófito na política. Antes de ser eleito senador em 2014, ele passou por três mandatos na Câmara. É alvo de duas investigações no Supremo Tribunal Federal (STF) que apuram irregularidades na sua campanha. Perto de Renan, no entanto, passou à sociedade e aos eleitores, até por seu perfil discreto e o pouco conhecimento que se tinha sobre ele, uma reputação ilibada. Além disso, adicionou à sua plataforma a defesa do fim do voto secreto para as decisões dos senadores. Para a sociedade, algo que faz todo o sentido: se os senadores são representantes dos eleitores, ali não devem votar ao sabor de suas conveniências pessoais, mas de acordo com o que pensam aqueles que representam. Renan chegou até superar seus próprios limites de caradurismo e prometeu que seria “um liberal, que iria ajudar a fazer as reformas”. Ninguém caiu na lorota. A maioria do Senado, enfim, ouviu a voz rouca dos indignados. E o Brasil que preza pela decência ganhou mais uma.

ACORDADO DE MADRUGADA O ministro do STF, em plena madrugada, soltou liminar às pressas para atender Renan (Crédito:Divulgação)

Durante todo o processo, os senadores demonstraram seu desconforto com a forte pressão oriunda das redes sociais. O senador Jorge Kajuru (PSB-GO) elaborou uma enquete perguntando aos eleitores como deveria votar. O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que tinha chegado a sinalizar o voto em Renan, resolveu esconder o voto na primeira sessão. Na segunda etapa, depois de severamente pressionado, declarou seu voto em Alcolumbre. Houve duas votações porque, diante da constatação da iminência da vitória de Alcolumbre, o processo de eleição se transformou num lamentável espetáculo circense. No qual, em um primeiro momento, a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), aliada de Renan, teve o despautério de roubar uma pasta das mãos de Alcolumbre na tentativa torpe de impedir que ele presidisse a sessão. Como se não bastasse, no segundo momento, a eleição acabou fraudada porque registrou-se uma duplicidade de votos em Renan Calheiros. “Foi uma vergonha”, classificou o senador Major Olímpio (PSL-SP). Em meio à barafunda que virou o plenário do Senado, Alcolumbre sobreviveu incólume, assistindo a tudo com uma calma que impressionou até os mais otimistas.

ENTRE TAPAS E BEIJOS O vencedor Alcolumbre foi quase as vias de fato com o adversário antes de ser cumprimentado por sua mulher Liana pela vitória (Crédito:MATEUS BONOMI)

Não sem a ajuda da estrutura partidária do DEM. Em novembro, seu partido alugou um pequeno avião. Foi a bordo da aeronave que o senador conseguiu intensificar as negociações com as bancadas estaduais. Em outra frente, Onyx Lorenzoni trabalhava de Brasília para convencê-los de que o voto certo era em Alcolumbre. Um processo que, inicialmente, provocou desgastes, dada a disposição de Major Olímpio, também da base do governo, de presidir igualmente o Senado. Na véspera da sexta-feira 1, quando os senadores tomaram posse e foi iniciada a eleição à Presidência da Casa, a estratégia usada para destronar Renan foi concebida em reuniões que ocorreram numa espécie de “QG” da campanha: o gabinete do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que também ensaiou uma candidatura e recebia o apoio do bloco de oposição formado pelo PDT, PSB e Rede. A ideia, no entanto, era tornar Alcolumbre o único remanescente da antiga Mesa Diretora. O presidente anterior, Eunício Oliveira (MDB-CE), não foi reeleito. Só havia outro nome da Mesa anterior, que era o senador Sérgio Petecão (PSD-AC). Mas ele foi convencido a renunciar. A partir daí, o caminho estava aberto para Alcolumbre assumir a presidência. Deflagrou-se, então, a batalha que produziu cenas vexatórias em pleno Senado da República.

O ARTICULADOR VITORIOSO O ministro Onyx Lorenzoni agiu com maestria nos bastidores (Crédito:Divulgação)

Bate boca colegial

Considerado aliado de Renan Calheiros, o secretário geral da Mesa, Luiz Fernando Bandeira de Mello, apresentou um parecer pelo qual Alcolumbre ficava impedido de presidir a sessão por ser candidato. Indicava que a peleja fosse comandada pelo senador mais velho, José Maranhão (MDB-PB), aliado de primeira hora de Renan. Como remanescente da Mesa, Alcolumbre não teve dúvida: destituiu Bandeira. Assim, pôde presidir os trabalhos iniciais. Quando a eleição de fato começasse, Maranhão assumiria. Era a deixa para que Alcolumbre, então, decidisse uma questão de ordem formulada pelo senador Lasier Martins (Pode-RS): a que requeria o voto aberto na eleição. Lasier contava com o apoio declarado de 48 senadores (a maioria é 41) em favor do voto aberto.

ara garantir que conduziria a sessão, Alcolumbre aboletou-se na cadeira atrás da Mesa principal do Senado. Sentou-se no cômodo e lá permaneceu por mais de sete horas. “Vossa excelência deve estar usando fraldão geriátrico”, ironizou Jorge Kajuru. Em meio a processo eleitoral, ele primeiro deu posse aos novos senadores. Submeteu, então, o voto aberto à apreciação dos colegas. Resultado: foi aprovado por 50 votos contra apenas dois. Se o voto fosse aberto, estava claro que Renan perderia. Os senadores que lhe franqueavam apoio só o fariam de forma velada, em razão do parentesco óbvio entre ele e a velha política.

CERCO NA MESA DIRETORA Todos tentaram tomar o poder na marra, atropelando ritos e procedimentos (Crédito:Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Antevendo o infortúnio, Renan desesperou-se como nunca antes no Senado. Em geral frio e calculista, Renan perdeu por completo as estribeiras, comportamento este totalmente incondizente com a altura do cargo ocupado por ele. Mas, em se tratando de Renan, tudo é possível. Possesso, por pouco ele não foi às vias de fato com Tasso Jereissati. “O responsável por isso é você, seu coronelzinho de merda, cangaceiro!”, disse, quando Tasso passou perto dele. “Você vai para a cadeia”, respondeu Tasso. “Venha para a porrada”, tornou Renan. A briga foi contida pelos demais senadores. O momento mais constrangedor veio em seguida, quando Kátia Abreu (PDT-TO), aliada de Renan, resolveu roubar a pasta na qual Davi Alcolumbre guardava os pareceres técnicos de seus assessores para conduzir a sessão. Kátia ficou agarrada à pasta, tentando inviabilizar a continuação da sessão. Gerou-se um impasse. O grupo ligado a Renan impedia Alcolumbre de realizar a eleição do novo presidente do Senado. Não restou outra saída senão adiar a eleição para o sábado 2, em busca de que no intervalo fosse costurado um acordo.

“Combater a criminalidade é importante. Mas os parlamentares estão priorizando a reforma da Previdência” Davi Alcolumbre, presidente do Senado

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O que se construiu, na verdade, foi uma tentativa de intervenção de um Poder da República sobre outro. O PT estava ao lado de Renan. A meia-noite, o MDB e o Solidariedade ingressaram no Supremo Tribunal Federal (STF) com um pedido de liminar para que a decisão de voto aberto determinada pelo Senado fosse suspensa. Na madrugada, o presidente do STF, José Antônio Dias Toffoli, ex-advogado do PT, como se já estivesse pronto para participar da tramoia, concedeu a liminar. Ele estabelecia que a eleição marcada para o dia seguinte deveria ser com voto secreto, contrariando a decisão da maioria do Senado. Uma interferência, àquela altura, injustificável.

RENALECO IMPLACÁVEL Manifestantes de fora protestavam contra o risco Renan (Crédito:FÁTIMA MEIRA/FUTURA PRESS)

No sábado 2, porém, quando o Senado novamente reuniu-se para eleger o novo presidente, ficou claro que as chances de Renan pareciam natimortas. Em reuniões anteriores, outros postulantes à Presidência começaram a retirar suas candidaturas em favor de Alcolumbre. Assim aconteceu com Simone Tebet, que pretendia disputar como candidata independente após ser derrotada por Renan na disputa interna do partido, e com Major Olímpio e Tasso Jereissati. Os senadores combinaram ainda que mostrariam as cédulas de votação, abrindo seu voto, tornando-o, assim, público. Percebendo a derrota, Renan, ao fazer seu discurso de candidato, acabou renunciando. “Esse aí não é o Davi! Ele é que é o Golias”, reagiu em seu discurso. Uma última patacoada, porém, estava em gestação. Ao contar os votos da primeira eleição, verificou-se que havia 82 cédulas. Ou seja: um voto a mais que o número total de senadores, 81. Alguém tinha votado duas vezes (leia mais às págs. 32 a 34). E duas vezes em Renan. A irresponsabilidade anulou a votação, que precisou ser realizada novamente. Finalmente, Alcolumbre acabou eleito em primeiro turno com 42 votos, um a mais que a maioria. O Highlander estava derrotado.

Cirurgia atrapalhou o corpo a corpo

Réu em dois processos e investigado em outros onze, Renan Calheiros teme agora o seu destino. Com o revés no Senado, é nítido o isolamento. Após a eleição, acabou envolvendo-se em nova situação que poderá mesmo levá-lo a responder a um processo na Comissão de Ética. Nas redes sociais, ele agrediu uma jornalista, insinuando que ela poderia ter tido relações com o pai de Simone Tebet, o ex-presidente do Senado Ramez Tebet. Na postagem constrangedora, que Renan depois retirou, ele chegou a escrever que Ramez, já falecido, teria usado um “membro mecânico” na relação. Nunca um senador havia descido tão baixo. O derradeiro representante da velha política tisnada pela Operação Lava Jato sai assim da ribalta pela porta dos fundos. Na avaliação de muitos senadores, é preciso ver como o vingativo e experiente Renan reagirá. Seu fôlego, porém, não parece ser o mesmo. Em seu lugar, adentra à cena Davi Alcolumbre – o Davi que destruiu Golias. A sociedade espera que ele compreenda o que a sua vitória representa.

No cômputo geral dos resultados, ficou bom para Bolsonaro e os seus planos  de reformas que já receberam aceno positivo das lideranças nas duas Casas

Lágrimas por trás das “evidências”
O presidente Bolsonaro, que inicialmente apoiou Renan, chorou ao ouvir a canção sertaneja, enquanto corria a votação no Senado. A letra da música parecia dar razões a emoção

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Evidências
Quando digo que deixei de te amar
É porque eu te amo
Quando eu digo que não quero mais você
É porque eu te quero
Eu tenho medo de te dar meu coração
E confessar que eu estou em tuas mãos
Mas não posso imaginar o que vai ser de mim
Se eu te perder um dia
Eu me afasto e me defendo de você, mas depois me entrego
Faço tipo, falo coisas que não sou, mas depois eu nego.
Mas a verdade é que eu sou louco por você. E tenho medo de pensar em te perder. Eu preciso aceitar que não dá mais pra separar as nossas vidas.
E nessa loucura de dizer que não te quero. Vou negando as aparências. Disfarçando as evidências…

Kátia tomou o regimento

As duas sessões que culminaram com a eleição de Davi Alcolumbre (DEM-AP) como presidente do Senado foram repletas de lances inusitados. O mais circense de todos foi quando a senadora Kátia Abreu (PDT-TO) resolveu roubar de Alcolumbre a pasta que continha as orientações técnicas de seus assessores para que conduzisse a sessão e as anotações sobre a ordem a ser concedida para os pronunciamentos dos colegas. Aliada de Renan Calheiros (MDB-AL), que também concorria ao cargo, Kátia Abreu foi tomada por desespero depois da votação que determinou que a votação seria aberta, e não secreta – um processo que levaria à derrota de seu candidato. Passou a andar, então, abraçada à pasta com os dois braços sobre o peito. No dia seguinte, ao se perceber protagonista do momento mais infantil das sessões, Kátia Abreu desculpou-se com Alcolumbre e lhe deu um buquê de rosas brancas para simbolizar a paz. Mesmo assim, manteve consigo a pasta como se fosse um troféu. “Não devolvi a pasta, mas dei flores”, disse, em tom de brincadeira.