O coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, 36 anos, vem de uma abastada família da classe média alta. É filho de um conceituado médico paulistano, cursou universidade na USP, mas largou tudo para morar numa barraca de lona ao lado de sem-tetos em Osasco. Muitos consideraram seu gesto como demagogia, mas ele afirma que tudo não passou de solidariedade aos mais pobres. De invasão em invasão a terrenos particulares, ele acumulou capital político para se lançar candidato à Presidência da República pelo PSOL. Em campanha pelo País com os recursos do Fundo Partidário do PSOL, Boulos prega que os sem-tetos ocupem todos os 7,9 milhões de imóveis desocupados no País.
“Felizmente, eu não perdi a capacidade de me indignar com a miséria e dediquei os últimos 16 anos da minha vida a lutar ao lado das pessoas que precisam de casa”, disse Boulos em entrevista de duas horas à ISTOÉ. Embora reconheça a importância da união dos partidos de esquerda, ele não cogita abrir mão de seu projeto em favor de uma candidatura única. Boulos defende que Lula tenha direito a disputar a atual eleição, entendendo que ele foi condenado sem motivo, demonstrando desconhecimento sobre o processo que levou o ex-presidente a ser condenado a 12 anos de prisão, com os autos recheados de provas contra ele. Entre as medidas que pretende tomar, se eleito, está a concessão de um indulto ao petista, que cumpre pena em Curitiba.

NÃO LEU Guilherme Boulos tentou convencer os jornalistas, sem
sucesso, de que Lula foi condenado sem provas (Crédito:Gabriel Reis)

Um dos focos do programa de Boulos é adotar uma agenda plebiscitária para definir questões como a reforma tributária, política e para revogar medidas do governo Temer, como a “PEC do teto” e a reforma trabalhista. Em outra frente, ele pretende atuar no combate às desigualdades aumentando a taxação dos mais ricos. “Nós somos a sétima economia mundial e estamos entre os dez países mais desiguais do mundo”, afirmou. “Precisamos tributar lucros e dividendos, taxar grandes fortunas e aumentar a alíquota de imposto sobre herança”, medidas que fatalmente afugentarão o capital para investimentos na recuperação da economia.

Muitos falam na necessidade de união das esquerdas. O senhor abriria mão da sua candidatura?

A nossa candidatura é para valer. Ela não está colocada em função da existência ou não de outras candidaturas. Ela é uma pré-candidatura que tem o objetivo de apresentar um projeto novo para o país, um projeto que não tenha medo de colocar o dedo na ferida, que não tenha medo de enfrentar privilégios, que não tenha medo, inclusive, de enfrentar a lógica desse sistema político apodrecido.

Mas o senhor tem 1% das pesquisas. Acha que vai captar os votos petistas deixados por Lula?

Defendo o direito do Lula ser candidato à presidência da República. Acho que a condenação dele foi uma condenação inconsistente, sem provas, e a sua prisão foi política.

Então o senhor não leu o processo contra ele – tem muitas provas lá…

Eu li. Gostaria então que você elencasse elas aqui.

Conhecemos bem o esquema do tríplex. Lula não foi condenado só pelo juiz Sergio Moro, mas também pelo TRF-4 e os tribunais superiores.

Se você for ver, contra o Michel Temer existem gravações que o país inteiro ouviu, dele no porão do palácio comprando o silêncio do Eduardo Cunha ou do braço direito dele numa cena ridícula carregando mala de dinheiro no meio da calçada. E Temer está dirigindo o país no Palácio do Planalto. Contra o Aécio Neves existem gravações dele negociando com o dono da JBS e ele está fazendo lei no Senado. Se você tiver uma gravação contra o Lula, uma mala ou um vídeo nos apresente aqui. Eu não vi e acho que o país também não viu.

Até o dono da OAS, Léo Pinheiro, confessou ter dado o tríplex a ele.

Depois de um ano e meio contradizendo os depoimentos anteriores dele. O que queria dizer é o seguinte: nós defendemos o direito do Lula ser candidato.

O senhor daria indulto ao Lula se fosse presidente?

O indulto, assim como a graça, são prerrogativas que se atribuem ao presidente da República para corrigir erros judiciais. Havendo condenações injustas, num governo meu isso não será mantido. Daria sim indulto ao Lula.

O senhor falou sobre a submissão de alguns temas a plebiscitos. Quais são os principais temas que devem ser submetidos à população para um escrutínio geral.

São três temas essenciais. A nossa primeira medida, a ser tomada no dia 1 de janeiro de 2019, é um plebiscito para o Congresso e para a sociedade brasileira revogar medidas tomadas pelo governo Temer: a reforma trabalhista, que retirou direitos sem qualquer diálogo com a sociedade, a emenda constitucional 95, a PEC do teto, que congelou investimentos públicos por 20 anos, e a entrega do Pré-Sal a empresas estrangeiras.

O senhor, que vem de uma família de classe média alta, estudou na USP e tem um pai que é médico, não acha demagogia morar num acampamento de sem-teto?

Tem uma coisa que alguns podem chamar de demagogia, mas que por muito tempo as pessoas chamaram de solidariedade. Solidariedade é você ter a capacidade de sentir uma dor que não é sua, é um sofrimento que você não passa. Ninguém precisa ter fome para se sensibilizar com quem passa fome. Ninguém precisa não ter casa para poder lutar ao lado das pessoas que não tem casa.

Qual é o preço médio que um ocupante precisa pagar para permanecer numa ocupação do MST? Num eventual governo seu as ocupações continuarão?

Essas perguntas são o retrato de como lamentavelmente o debate sobre moradia e sobre luta por moradia é muito mal feito no Brasil. E como as “fake news” prevalecem muitas vezes em relação à verdade de quem conhece, vai lá e vive a realidade. Ninguém precisa pagar um real para estar numa ocupação do MTST. As pessoas chegam por necessidade de moradia.

E como o seu governo vai lidar com as ocupações?

No meu governo vamos lidar com as ocupações de terra e moradia simplesmente seguindo o estatuto das cidades e a Constituição brasileira. Temos que fazer cumprir a lei em relação aos imóveis abandonados, que não cumprem função social.

O senhor vai expropriar imóveis dos mais ricos, por exemplo?

Nós não precisaremos fazer expropriações. Basta cumprir a lei. Nós temos no Brasil, ao mesmo tempo, 6,35 milhões de famílias sem casa, segundo o IBGE, e 7,9 milhões de imóveis abandonados. No Brasil tem mais casa sem gente do que gente sem casa.

Como fazer para resolver o problema da reduzida capacidade de investimento do Estado?

Nós defendemos um aumento profundo do investimento público no Brasil porque nenhum país saiu da crise sem investimento público. Precisamos mexer numa coisa: neste ano teremos R$ 283 bilhões a menos na arrecadação por causa das desonerações fiscais. É importante acabar com isso.

E o senhor revogaria as desonerações?

Todas, não, há desonerações que são necessárias para setores que estão passando por situações específicas. O problema é que no Brasil as desonerações chegaram a 4% do PIB, enquanto a média mundial é de 2% do PIB.

E muitas delas começaram num governo de esquerda?

Muitas delas no governo da Dilma. Foi uma crítica que nós fizemos de maneira cabal a Dilma naquele momento, quando em 2012 ela criou um plano de desonerações – um equívoco brutal. Outro caminho para conseguir dinheiro é a taxação de lucros e dividendos. Essa taxação, segundo os tributaristas, geraria, em média, receitas de R$ 60 bilhões ao ano. Com esse dinheiro se criam e se mantêm um milhão de novas vagas na universidade pública.

Independentemente do custo do Estado, os serviços que ele presta não são satisfatórios. A segurança pública, por exemplo, é um problema.

Nós temos um modelo de segurança pública que fracassou. É um modelo caro, violento e ineficaz. Há dez dias saiu a publicação do Atlas da Violência no Brasil. Os dados são alarmantes. A taxa de homicídios é trinta vezes maior que a da Europa.

De acordo com o anuário brasileiro de segurança pública uma mulher é estuprada a cada onze minutos no Brasil. O que o senhor faria para reduzir a vioIencia contra as mulheres?

A desigualdade no Brasil tem várias faces. Ela não é só uma desigualdade de renda, de riqueza, de patrimônio. É uma desigualdade racial profunda e é também uma desigualdade de gênero., inclusive na questão salarial e de poder. Para as mulheres vítimas de violência, nós precisamos trabalhar com redes de acolhimento, para além do que a lei Maria da Penha já oferece. E depois é preciso ter uma política educativa.

Quais são seus planos para a área de educação?

Eu sei o que é uma escola pública. Dei aula três anos em ensino médio em uma escola na periferia de São Paulo. Sei da situação dos professores, do nível de desânimo dos alunos e de como o currículo é muitas vezes desvinculado da realidade das pessoas. Precisamos mexer aí. E o nome disso é investimento. Não adianta fazer lero-lero, firula. Tem que investir mais em educação básica e também no ensino superior público.

E quanto à redução da maioridade penal?

Sou contra a redução da maioridade penal. Existe uma lógica que foi vendida para parte da sociedade brasileira de que botar mais gente na cadeia ou na prisão resolve os problemas. Nos últimos dez anos a população carcerária do Brasil dobrou e a sociedade não ficou mais segura.

O senhor é a favor da descriminalização das drogas?

Acho que a descriminalização deve ser debatida com a sociedade brasileira e nós vamos encontrar o modelo pelo qual essa descriminalização será feita. O que eu tenho claro é que não se combate venda ilegal de drogas militarizando favela e matando gente.

E quais são suas propostas para a saúde?

Sou defensor do SUS, acho que o sistema único de saúde no Brasil é um modelo muito bom, que não funciona do jeito que deveria porque é sub-financiado. O financiamento de saúde pública no Brasil é 3,8% do PIB e em países com sistemas universais como o nosso, a média é de 8% do PIB.

Participaram da sabatina os jornalistas Camila Srougi, Celso Masson, Cilene Pereira, Gabriel Baldocchi, Germano Oliveira e Vicente Vilardaga

 

Leia a íntegra da entrevista com Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST

O que o motiva a disputar a presidência? E porque o eleitor deve confiar no senhor para presidir o Brasil nos próximos quatro anos?

Essa é a eleição mais imprevisível desde 1989, nos últimos trinta anos no país. A multiplicidade de candidaturas não é o único aspecto. Nós temos também um sentimento de anti-política, de descrença na política que é hoje é generalizado na sociedade brasileira, basta ver o aumento dos índices de abstenção, de voto nulo, voto branco e como isso se expressa nas próprias pesquisas para eleição presidencial neste ano. O Brasil está numa crise profunda, numa crise política, econômica, ética e também numa crise democrática. Isso nos desafia a buscar tirar o País do buraco e a construir uma nova alternativa. O sistema político, da forma como ele se organiza hoje, não tem como responder aos anseios da maioria da sociedade brasileira. Diante da indignação que a sociedade expressa, o sistema político vira as costas e se faz de surdo. A nossa pré-candidatura não é uma pré-candidatura tradicional. Estou representando uma aliança de partidos do PSOL, meu partido, com o PCB, mas também com o conjunto de movimentos sociais e setores da sociedade para apresentar uma nova forma de se fazer política no Brasil, que venha de baixo para cima, que escute as pessoas, que dialogue com as pessoas. Isso para nós é essencial, sobretudo uma forma de fazer política que enfrente o abismo entre Brasília de um lado e o Brasil do outro. Esse é o grande tema que hoje está posto nesta eleição. É preciso aproximar o poder das pessoas, hoje há um abismo, uma distância enorme entre o poder e a pessoas que gera uma crise de representação.

Qual sua fórmula para criar essa ponte, para aproximar esses pólos que estão separados hoje?

Nós acreditamos que esse sistema político faliu, apodreceu, o presidencialismo de coalizão se deteriorou em um enorme balcão de negócios, num toma lá da cá onde empresários e banqueiros financiam campanhas eleitorais, através desse financiamento elegem as suas bancadas, bancadas de interesse para fazer lobby, não apenas no Congresso Nacional, mas também no Executivo, e capturam o interesse público. Quem se elege presidente da República para poder ter o mínimo de governabilidade troca apoio no Congresso por cargos no governo, normalmente de uma maneira não muito republicana, com interesses que não são propriamente o interesse público. Este sistema gerou a descrença, gerou a desilusão nas pessoas, nós precisamos construir outra saída, que é uma governabilidade não apenas entre presidente e Congresso Nacional, mas uma governabilidade com a sociedade. A maioria deve ser construída junto com a sociedade brasileira e não apenas em uma negociação de bastidores entre Congresso e presidente. Isso significa reduzir o poder dos políticos e aumentar o poder das pessoas com plebiscitos e referendos. O povo não pode ser chamado só a cada quatro anos só para apertar um botão e ali se encerra a democracia. O povo tem que ser ouvido de maneira permanente e decidir sobre as grandes questões nacionais. Essa é nossa proposta.

Em nome dessa governabilidade, muitos falam da necessidade de união das esquerdas. O senhor abriria mão da sua candidatura? E pra quem? Para o Ciro Gomes?

A nossa candidatura é para valer. Ela não é uma candidatura que está colocada em função da existência ou não de outras candidaturas. Ela é uma pré-candidatura que tem o objetivo de apresentar um projeto novo para o país, um projeto que não tenha medo de colocar o dedo na ferida, que não tenho medo de enfrentar privilégios, que não tenha medo, inclusive, de enfrentar a lógica desse sistema político apodrecido. Agora, nós precisamos ter unidade, quando se diz unidade da esquerda, nós entendemos como uma unidade contra os retrocessos que esse governo do Michel Temer representa. Em dois anos, o Brasil andou décadas para trás. Nós perdemos direitos sociais. O povo brasileiro está perdendo conquistas que foram duramente obtidas, muitas vezes com lutas. Nós estamos tendo um retrocesso na democracia brasileira. Nós nunca tivemos, é verdade, uma democracia plena, 100%. Não existe democracia política quando não há democracia social e econômica. Mas nós estamos sofrendo graves retrocessos democráticos. Por isso a esquerda tem que estar junta em torno de alguns princípios para enfrentar esses retrocessos em direitos sociais e esses retrocessos na democracia, mas isso não pode anular a diversidade e as diferenças de projetos que se colocam no debate eleitoral.

Mas o senhor tem 1% das pesquisas. O Lula te elogiou naquele palanque, no dia da prisão dele. Você acha que vai captar esses votos petistas com ele fora da disputa?

Veja, primeiro eu defendo o direito do Lula ser candidato à presidência da República. Acho que a condenação dele foi uma condenação inconsistente, sem provas, e a sua prisão foi política. Acho que ele deve concorrer à presidência da República.

Acho que o senhor não viu, então, o processo contra ele – tem muitas provas.

Eu li. Gostaria então que você elencasse elas aqui.

Eu que fiz a matéria do triplex e conheço bem o esquema. Inclusive Lula foi condenado pelo Moro e pelo TRF-4.

Se você for ver contra o Michel Temer existem gravações que o país inteiro ouviu, dele no porão do palácio comprando o silêncio do Eduardo Cunha ou do braço direito dele numa cena ridícula carregando mala de dinheiro no meio da calçada. E Temer está dirigindo o país no Palácio do Planalto. Contra o Aécio Neves existem gravações dele negociando com o dono da JBS e ele está fazendo lei no Senado. Se você tiver uma gravação contra o Lula, uma mala ou um vídeo nos apresente aqui. Eu não vi e acho que o país também não viu.

Tem o Léo Pinheiro, que confessou ter dado o triplex para ele.

Depois de um ano e meio contradizendo os depoimentos anteriores dele. O que queria dizer é o seguinte: nós defendemos o direito do Lula ser candidato. E voltando à questão. A pesquisa do Datafolha apresentou 1%. Agora o Datafolha apresentou também que mais de um terço da população brasileira não sabe em quem vai voltar, essa eleição é absolutamente aberta. Essa eleição é uma eleição em que nós temos que apresentar um projeto para o país e é isso que nós vamos fazer.

Só para fechar, o senhor daria indulto ao Lula se você fosse presidente?

O indulto, assim como a graça, são prerrogativas que se atribuem ao presidente da República, em várias constituições, não apenas na brasileira para corrigir erros judiciais.  Eu não acredito que nenhuma instituição é infalível. Eu não acredito que juiz é Deus, como alguns se crêem. Acredito que as instituições podem falhar e devem ter seu sistema de correção. Havendo uma farsa judicial ou condenações injustas num governo meu isso não será mantido. Daria sim indulto ao Lula. Como daria, por exemplo, ao Rafael Braga, jovem negro que foi preso em 2013 por portar uma garrafa de Pinho Sol e plantaram falsas provas contra ele. Num governo meu a injustiça não vai ser tolerada.

Então o pessoal da Lava Jato pode ficar tranqüilo que vai sair todo mundo…

Aqueles que têm prova que fiquem. Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Geddel, que tinha mala de dinheiro no apartamento dele. Prova. Onde tem prova, tem que ter condenação independentemente da coloração partidária, inclusive a do Aécio, que está solto, inclusive a do Temer, que está solto.

O senhor falou sobre a submissão de alguns temas a plebiscitos. Queria saber quais são os principais temas que devem ser submetidos à população para um escrutínio geral.

Eu diria agora três temas essenciais, que são prioridades na nossa proposta de governo para o Brasil. Primeiro, a nossa primeira medida, dia 1 de janeiro de 2019, que nós iremos apresentar, se eleitos, é um projeto de um plebiscito para o Congresso e para a sociedade brasileira para revogar medidas tomadas pelo governo de Michel Temer. Uma reforma trabalhista que retirou direitos de mais de 70 anos sem qualquer diálogo com a sociedade, sem qualquer diálogo com entidades representativas. A emenda constitucional 95, a famosa PEC do teto, que, de uma maneira inédita, sem nenhum paralelo no mundo, congela investimento público por 20 anos no país em saúde, educação, moradia, em todas as áreas, sem conversar com ninguém, aprovada debaixo de bomba na Esplanada dos Ministérios. A entrega do Pré-Sal para empresas estrangeiras, a mudança do marco regulatório que tira da Petrobras o controle sobre os campos do Pré-Sal. Essas seriam algumas medidas que nós vamos colocar para a sociedade brasileira decidir. Esse é o primeiro plebiscito.

Haverá outros?

Uma segunda questão que achamos que devemos submeter a plebiscito é o tema tributário no país. Nós somos a sétima economia do mundo e estamos entre os dez países mais desiguais do mundo. Há uma enorme contradição aí. O relatório da Oxfam, organização britânica que estuda a desigualdade no mundo, mostrou, no fim do ano passado, que no Brasil, seis bilionários têm mais riquezas que 100 milhões de pessoas. Isso não pode continuar assim. E para isso nós precisamos rever a forma como se financia o estado brasileiro. Hoje o estado brasileiro é a história do Robin Hood, que tirava dos ricos para dar aos pobres, só que ao contrário. Tira dos pobres e da classe média para dar para os super ricos, num sistema tributário absolutamente injusto. No Brasil hoje quem tem menos paga mais e quem tem mais paga menos. Vou dar um dado apenas para reforçar esse argumento. Os 10% mais ricos do país tem uma incidência de 20% de carga tributária sobre sua renda, os 10% mais pobres tem uma incidência de 53% de carga tributária sobre sua renda. Porque imposto no Brasil hoje é essencialmente imposto sobre consumo, 49,5% de toda a carga tributária é imposto indireto –sobre renda é apenas 21%. Nos Estados Unidos, que não pode ser acusado de ser comunista, o imposto sobre renda chega a proporção de carga tributária de mais de 40%, quase 50%. Nós precisamos tributar lucros e dividendos, taxar grandes fortunas, aumentar alíquota de imposto sobre herança, criar uma nova faixa no imposto de renda para que a gente possa fazer com que a classe média e os trabalhadores que já pagam muito possam pagar menos e os de cima, o 1%, paguem mais. Uma reforma tributária como essa tem que ser debatida com a sociedade e por isso nós queremos fazê-la por plebiscito.

E a reforma política?

É a terceira questão que nós acreditamos que deve ser levada a plebiscito. O sistema político brasileiro tem que ser mudado. Os plebiscitos ajudam a mudá-lo e também ajudam a definir os termos e critérios desta mudança. Nós precisamos enfrentar privilégios. Não é admissível a farra que se tem na cúpula dos poderes no Brasil, inclusive aqueles que alguns consideram o poder sacrossanto, acima do bem e do mal, que é o Poder Judiciário. O Poder Judiciário tem o papel de fazer justiça, deve sim investigar a corrupção, mas deve fazer o mesmo no seu próprio quintal. O Judiciário é um poder cheio de privilégios. Judiciário é o poder que tem auxílio para tudo, juiz, desembargador, procurador ganhando acima do teto constitucional, auxílio terno, auxílio viagem para Miami, auxílio pão de queijo, todo tipo de auxílio está lá no judiciário. Tem que acabar com essa farra. Para juiz que vende sentença hoje a condenação é aposentadoria com salário integral. É a farra que existe também no Executivo e no Legislativo. Há todo tipo de auxílio. Queremos enfrentar privilégios, dar transparência e ter maior participação popular e controle social sobre os poderes.

O senhor vem de uma família de classe média alta, estudou na USP, seu pai é médico conceituado, o senhor não acha um pouco de demagogia, por exemplo, morar num acampamento de sem teto?

Tem uma coisa que alguns podem chamar de demagogia, mas que por muito tempo as pessoas chamaram de solidariedade. Solidariedade é você ter a capacidade de sentir uma dor que não é sua, é um sofrimento que você não passa. Não sei se você já teve essa oportunidade. Ninguém precisa ter fome para se sensibilizar com quem passa fome. Ninguém precisa não ter casa para poder lutar ao lado das pessoas que não tem casa. É um sintoma da sociedade brasileira, do nível que nós estamos, do abismo ético em que nós estamos, que a solidariedade seja criminalizada ou seja tratada como uma demagogia. Triste isso, inclusive. Eu recomendaria, inclusive, que você ou qualquer outro que pensam dessa maneira possam visitar um acampamento e ver como as pessoas vivem lá, quem sabe você possa se sensibilizar. Um problema que nós temos hoje no Brasil é a perda da capacidade das pessoas se indignarem. A pobreza, a miséria, o sofrimento viraram quase parte da paisagem, virou invisível, as pessoas perderam a capacidade de se indignar com isso, naturalizaram isso. Eu, felizmente, não perdi essa capacidade e dediquei os últimos 16 anos da minha vida a lutar, com muito orgulho, ao lado das pessoas que precisam de casa.

O senhor está falando de propostas ousadas no campo da tributação. Não é de hoje que várias propostas foram elaboradas, mas param sempre na negociação do Congresso. Por que o senhor acha que conseguiria levar adiante esse tipo de proposta? E se conseguisse, o senhor acha que resolveria o problema orçamentário que o Brasil enfrenta hoje?

Primeiro a questão da governabilidade. Eu tentei colocar na minha apresentação inicial que eu acredito em um novo jeito de governabilidade. Isso não significa deixar de dialogar com o Congresso. Acho que diálogo nós temos que fazer com todos. Quem faz política com intolerância, quem faz política com incapacidade de diálogo, não faz bem ao país. Diálogo a gente tem que fazer com todo mundo, inclusive com quem a gente diverge, inclusive com adversários políticos. Agora diálogo não pode significar negociar princípios. Diálogo não pode significar vender bandeiras no balcão de negócios do Congresso Nacional.  Isso eu não vou fazer. A forma de governar o Brasil eu acredito que deva ser, sobretudo, junto com a sociedade. Nem o presidente da República e nem o Congresso Nacional devem poder tudo. O voto não é um cheque em branco que a gente dá e o representante faz o que quiser. Não deveria ser assim, pelo menos. Hoje lamentavelmente na democracia fragilizada que a gente tem funciona assim. Por isso eu acredito que a aprovação dessas propostas e de outras que a gente vai ter condições de conversar aqui, ela tem que passar por um diálogo com a sociedade e não pelos canais tradicionais de uma negociação totalmente viciada entre Executivo e Legislativo. Isso precisa ser construído. E, aliás, é assim que se construíram mudanças aqui no Brasil e em várias partes do mundo. A ditadura militar não se encerrou porque um grupo de generais se fechou numa sala e achou que era o momento de dar fim a ela. A ditadura militar se encerrou porque a sociedade se organizou, foi para as ruas, fez o movimento das Diretas já e os movimentos sociais se articularam. As mudanças não se fazem apenas por dentro das instituições porque ninguém abre mão de seus privilégios de bom grado, ninguém abre mão voluntariamente de privilégios. Por isso eu acredito que um projeto como esse é plenamente viável no Brasil com a organização da sociedade, com mobilização e participação popular.

O episódio da greve dos caminhoneiros não mostrou que a sociedade, se perguntada a se posicionar sobre o tema tributário, vai pedir menos tributos em vez de mais?

Depende de como o debate é feito na sociedade brasileira, se você tem todos os dias a imprensa martelando que essa é a saída, evidentemente as pessoas passam a crer nisso. Se você consegue fazer um debate e mostra para as pessoas, por exemplo, a questão do petróleo ou a questão do preço do combustível. Se houvesse um debate bem feito na sociedade brasileira e mostrasse que o aumento do preço dos combustíveis não resultou de um aumento de impostos, mas resultou de uma política de preços que atrelou o preço na refinaria ao preço internacional do barril de petróleo, mesmo isso não tendo nenhuma incidência nos custos nacionais de produção. De uma política que priorizou como um desmonte da Petrobras, priorizou, ao invés de refinar o óleo cru aqui priorizou voltar para uma lógica colonial de exportar óleo cru para importar o combustível refinado, que com isso se atrela ao valor do dólar na importação – e por isso se aumenta o preço. Saiu uma pesquisa importante em relação a isso do Instituto Locomotiva, que mostrou que, diante da afirmação de que os ricos precisam pagar mais impostos, mais de 80% da população concorda. A população percebe que há uma injustiça tributária. Mas o debate não pode ser feito de uma maneira viciada. Se todos os termos do debate forem colocados e se se permitir à sociedade um debate democrático eu tenho certeza de que a decisão das pessoas vai ser a melhor para o país.

Qual é o preço médio que um ocupante precisa pagar para permanecer numa ocupação do MST? Num eventual governo seu as ocupações continuarão?

Essas perguntas são o retrato de como lamentavelmente o debate sobre moradia e sobre luta por moradia é muito mal feito no Brasil. E como as “fake news” prevalecem muitas vezes em relação à verdade de quem conhece, vai lá e vive a realidade. Primeiro, em relação a supostas cobranças. Ninguém precisa pagar um real para estar numa ocupação do MTST. Aliás, todos os órgãos de imprensa que trabalham com seriedade e apuraram dizem isso em todas as matérias. Aqueles que inventaram mentiras por conta do episódio recente do Largo do Paissandu, que não era uma ocupação organizada pelo MTST, estão respondendo na Justiça por “fake news”. E serão condenados seguramente por isso. Nas ocupações do MTST as pessoas chegam por necessidade de moradia. É muito comum nós ouvirmos parte da sociedade dizer que são todos vagabundos, não querem trabalhar e estão lá para tomar o que é dos outros. Essa é uma oportunidade para a gente esclarecer que alguém que vai para uma ocupação, uma mãe de família que vai para uma ocupação com seus dois filhos, pisar no barro, ficar num barraco de lona, carregar galão de água para poder ir para o seu barraco, sem luz, sem infra-estrutura não faz isso porque quer. E ficar nessa situação não é nenhuma vantagem. As pessoas fazem isso por completa falta de opção, as pessoas fazem isso por não ter alternativa. Porque muita gente no Brasil tem que fazer hoje a dura, duríssima escolha no final do mês entre pagar aluguel e botar comida na mesa. Acho que todo mundo, quem está nos assistindo, deve conhecer a história de gente que ficou desempregada na crise e não tem mais como pagar aluguel. As ocupações são resultado disso.

E como o seu governo vai lidar com as ocupações?

O MTST baliza sua atuação no que diz a constituição federal. A constituição diz que há o direito à propriedade, mas que a propriedade precisa cumprir uma função social. Uma propriedade que está abandonada, largada, devendo imposto não cumpre nenhuma função social. E é por isso que as ocupações ocorrem. No meu governo, no nosso governo, nós vamos lidar com as ocupações de terra simplesmente cumprindo o estatuto das cidades e a constituição brasileira, que é pegar imóvel ocioso, que está abandonado, devendo imposto, fazer IPTU progressivo e fazer desapropriação. Isso está na lei que não se cumpre. Por que curiosamente algumas leis no Brasil não pegam, em geral são aquelas que favorecem os mais pobres. Fazer desapropriação, pegar imóveis vazios nas regiões centrais, que só é usado para especulação imobiliária, requalificar e fazer moradia popular.

Não é um crime estimular uma invasão num lugar em que se sabe que há condições de moradia, prédios até ruindo, como aconteceu no largo do Paissandu? Não é uma contradição estimular ocupações em prédios que não sejam habitáveis?

É um crime o poder público deixar esses prédios abandonados, se deteriorando. Esse prédio que você citou do desabamento no largo do Paissandu era um prédio do poder público, da União que foi repassado para a Prefeitura. O que eles fizeram? O poder público tem defesa civil, o poder público tem bombeiros, o poder público tem equipe técnica de arquitetos e engenheiros. Quando foram lá? Foram lá depois da tragédia para tirar foto e dizer que estavam fazendo alguma coisa. Essa é uma responsabilidade do poder público e não do movimento social. Querer atribuir ao movimento social uma responsabilidade que ele não tem a menor condição de exercer é descabido. O que o movimento social faz é organizar pessoas que precisam de moradia para fazer de uma maneira legítima a luta por essa moradia. Toda ocupação é resultado de um duplo abandono: abandono de um imóvel e de abandono de gente. O movimento organiza isso. Existem práticas do movimento social que são de aproveitadores e oportunistas, existe, não tenho a menor dúvida. Se alguém que se diz do movimento social cobra aluguel de família em ocupação é um aproveitador, não merece nosso apoio e precisa ser responsabilizado por isso. Agora, práticas isoladas não podem ser a régua para julgar tudo. Aproveitador existe em todo lado. Existe no jornalismo, existe no poder público. Sem dúvida, há muito mais aproveitadores por metro quadrado no Congresso Nacional do que numa ocupação de moradia.

O Brasil tem 10 milhões de sem teto. Só em São Paulo são 1,2 milhão de pessoas. Como é que vai fazer para abrigar tanta gente no seu governo. O senhor vai expropriar imóveis dos mais ricos, por exemplo? Vai permitir a ocupação de imóveis públicos?

Primeiro, corrigindo seu dado, são 6,35 milhões de família sem casa no Brasil, segundo o IBGE e a Fundação João Pinheiro, que é o órgão oficial que opera os dados do Ministério das Cidades. Agora uma questão importante é a seguinte: nós não precisamos fazer expropriações. Basta cumprir a lei. Nós temos no Brasil, ao mesmo tempo, 7,9 milhões de imóveis abandonados. No Brasil tem mais casa sem gente do que gente sem casa. Aquele mito absurdo que às vezes a gente ouve por aí – vão querer tomar meu quarto, tomar meu quintal, dividir minha casa de praia. Isso é pessoa que vende notícia falsa para fugir do debate real. O debate real é que nós temos mais imóveis abandonados do que gente sem casa. O que temos que  fazer? Cumprir a lei, em relação aos imóveis abandonados. Isso resolveria parte expressiva do problema. E tem que retomar investimento público, até porque esses imóveis têm que ser requalificados, tem que ser reformados.

Programas como o Minha Casa Minha Vida serão mantidos?

Uma questão que eu quero comentar aqui, que é essencial também, é que não basta construir casa. Precisamos mudar a lógica de como historicamente se conformaram as cidades brasileiras e os programas oficiais de habitação, inclusive o Minha Casa Minha Vida mantiveram. Por essa lógica pobre vai morar nos fundões, pobres são sempre jogados para mais longe, para as periferias mais distantes. A gente tem que trazer os mais pobres para morar nas regiões centrais, com moradia popular, como já existe em várias capitais do mundo, com programas como o de locação social. Paris é pioneira em programa de locação social. Ou como o programa de hotel social, agora implementado com sucesso em Nova York. Nós temos que garantir condições para que os trabalhadores mais pobres possam também morar nas regiões onde tem mais infra-estrutura e serviços. Porque aqui nós não estamos falando só de casa, mas também de qualidade de vida e de mobilidade urbana. O problema do trânsito nas cidades, o problemas dos ônibus superlotados tem a ver com as enormes distâncias que as pessoas percorrem todos os dias do local de moradia ao local de trabalho. A melhor oferta de emprego está nas regiões centrais. Se as pessoas podem morar também nas regiões centrais isso resolve numa só tacada o problema de moradia, problema de serviços, problema de saneamento e problema de mobilidade.

Quanto à greve dos caminhoneiros porque o senhor acha que ela assumiu grandes proporções. Se estivesse no poder, como o senhor agiria nesse caso? O governo agiu certo? 

Primeiro eu considero a greve dos caminhoneiros um movimento legítimo, um movimento que decorreu de um problema real. Houve mais de dez aumentos do diesel em menos de um mês. Isso evidentemente fez com que aqueles trabalhadores ficassem enforcados porque se ele não reajusta o preço do frete daqui a pouco ele está pagando para trabalhar. Foi isso que motivou a greve dos caminhoneiros. E isso é uma reivindicação legítima. O governo Temer errou em todos os momentos. Errou ao deixar chegar neste ponto. Os caminhoneiros procuraram o governo antes, que não deu nenhuma atenção para a pauta, nenhuma atenção para a reivindicação. Sem contar que o governo foi o responsável por essas subidas sucessivas nos preços e por uma política desastrosa em relação à Petrobras. Uma Petrobras que só olha para os acionistas em Nova York e fica de costas para o povo brasileiro. Foi isso que o senhor Pedro Parente fez e depois da lambança saiu tranquilamente, foi embora para se tornar presidente do Conselho da BRF. Uma porta giratória escancarada. Em qualquer país do mundo ele estaria respondendo pelo que fez. Depois que se formou o movimento, o governo agiu muito mal, demorou para agir, foi negociar com transportadora, aceitou barganha de isenção fiscal, chegou a isentar importações, eu nunca vi isso. Todos os países do mundo protegendo sua indústria e aqui está se isentando importações. É um nível de entreguismo, de lesa pátria sem tamanho. Depois Temer fez um decreto para mandar o Exército desbloquear as rodovias. Num governo nosso a questão nem chegaria a esse ponto. A gente dialogaria – o governo Temer não ouve, não dialoga com ninguém. É um governo que governa dentro do palácio com 4% de aprovação na sociedade. Num governo nosso a gente não deixaria a Petrobras fazer uma política de preços como essa, que não pega só o diesel e a gasolina, pega também o gás de cozinha. Nós vimos o dado absurdo de que 1,2 milhão de pessoas voltaram a cozinhar a lenha. Voltou-se ao século 19, por conta dos aumentos abusivos do gás de cozinha. Saiu recentemente o dado de que há famílias gastando 40% do orçamento familiar com botijão de gás.

Aproveitando o gancho da Petrobras. É um fato incontestável que tanto o diesel como o gás de cozinha foram muito reajustados e isso gerou os protestos. Uma solução não seria abrir o mercado brasileiro para mais concorrência permitindo que outras empresas competissem com a Petrobras? A concorrência não seria uma solução menos traumática?

Essa foi exatamente a política feita pelo Pedro Parente. Pedro Parente entrou num processo de privatização velada da Petrobras, desmontou a Petrobras. Podem dizer que quem desmontou a Petrobras foi o governo Lula, foi o governo Dilma, foi a corrupção. Veja bem. Nós podemos pegar os dados de lucros da Petrobras na sua história e dos dez maiores lucros, seis foram entre 2006 e 2013. Houve corrupção na Petrobras? Sem dúvida alguma. Agora, se alguém assalta sua casa, o que você faz? Você vai dar sua casa para o vizinho ou você vai melhorar o sistema de segurança. Teve roubo na Petrobras, o que se faz? Vai entregar ela para a Shell, para a British Petroleum, para as petroleiras chinesas ou vai criar controle social, fazer auditoria em contratos, criar formas de transparência. É isso que deve ser feito. Mas mantendo o papel ativo da Petrobras como empresa pública. O gás aumentou, o diesel aumentou, a gasolina aumentou exatamente quando se abriu totalmente o mercado com uma política da Petrobras voltada para acionista ganhar dinheiro em Nova York. E são os acionistas minoritários porque os acionista majoritário da Petrobras é o povo brasileiro, através das ações do Estado, e esse acionista majoritário foi duramente prejudicado para garantir interesse de acionista internacional.

Aqui no Brasil a gasolina chegou a quase 5 reais. Na Venezuela, um litro de combustível é quinze centavos. O senhor vai subsidiar a gasolina? Vai tirar dinheiro de onde para subsidiar quem tem dinheiro para andar de carro?

Nós não precisamos tirar de nenhum lugar para que o preço da gasolina seja justo. Primeiro, o preço da gasolina no país não se atrela, principalmente quando tem auto-suficiência de produção de óleo, ao mercado internacional de maneira automática e diária. Se cai um avião na Arábia Saudita, se o príncipe árabe acorda mal humorado e faz uma declaração imprópria, aumenta o preço do combustível no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. Isso é descabido, não tem nenhuma relação com o custo de produção. O Brasil tem auto-suficiência para extração de óleo cru, o Brasil tem uma capacidade de refino que está caindo pelo desinvestimento de refinarias, mas ainda é de quase 80% de tudo que se produz de petróleo. O Brasil tem condições de fazer a cadeia inteira, desde a extração até a distribuição. E isso não está sendo feito. O aumento está relacionado a você voltar à lógica da colônia, de 500 anos atrás. Exportava cana-de-açúcar para importar o açúcar refinado. É isso que estão fazendo. E desmontando a capacidade daqui. Você tem que controlar e regular a distribuição. Não é admissível que a distribuidora possa fazer preço como bem entende. Tem que haver uma fiscalização do governo nisso. Fazendo isso você garante um preço da gasolina, um preço do diesel, que seja um preço que seja totalmente compatível com os padrões de consumo do povo brasileiro.

Outra coisa que se colocou muito forte em função da greve é a dependência do Brasil do transporte rodoviário? Somos dependentes das estradas, dependente dos combustíveis, dependente dos caminhões. Não seria importante construir um novo modelo de transporte no país?

Concordo integralmente com o que você diz. A gente tem que pensar no Brasil em um novo modelo de desenvolvimento. Os modais de transporte são um exemplo disso, mas também as matrizes energéticas devem ser pensadas nessa lógica. Nós temos que substituir gradualmente os combustíveis fósseis por energia limpa e renovável. Olha só o que já representa a energia eólica e solar na Alemanha. Nós temos todas as condições de fazer isso no Brasil. Isso é essencial. Nós precisamos de um novo modelo de desenvolvimento para todos os âmbitos da sociedade. Quero falar do transporte, mas também ligar isso com outros elementos de um modelo que a gente acredita e que a gente propõe para o Brasil. Em relação ao transporte, 85% mais ou menos de tudo que se transporta no país é por matriz rodoviária. Isso é um absurdo. A matriz rodoviária é a mais cara e a mais poluente, se comparada com ferrovia e hidrovia. O Brasil é o país com maior potencial hidroviário do mundo, que é absolutamente subutilizado. As ferrovias, depois da privatização nos anos 90, foram sucateadas e houve um desinvestimento. Empresas concessionárias não cumpriram sequer os termos do contrato em relação às ferrovias. E o transporte rodoviário como matriz principal atende a interesses, que não são os interesses da sociedade ou os interesses da sustentabilidade ambiental, mas são interesses da indústria automobilística e do setor do petróleo, que é quem ganha com essa história toda. Nós não vamos ceder ao lobby da indústria automobilística e do petróleo.

O senhor acredita que o governo Dilma fez isso?

Eu acredito que os governos do PT, tanto Lula como Dilma, mantiveram esse modal e não alteraram isso. É uma das críticas frontais que nós temos a esses governos. Modelo de desenvolvimento não pode buscar apenas crescimento econômico. Tem gente que acha que 5% do PIB é a solução para todos os problemas. Não é bem assim. O período em que o Brasil teve maior crescimento econômico na sua história recente foi o milagre econômico na ditadura. Foi um período de profunda concentração de renda, de devastação ambiental, de passar por cima de populações indígenas e quilombolas. Não é esse modelo que a gente quer. A gente quer crescimento com distribuição de renda, com sustentabilidade ambiental e com respeito aos nossos povos. Crescimento não pode matar indígena, crescimento não pode deixar de demarcar terra quilombola. Senão vira Mariana, um dos maiores crimes ambientais da nossa história, um caso de mineração predatória feita sem preocupação humana e social. Senão vira Barcarena, agora no Pará, com a empresa Hydro, que está poluindo os rios da região de maneira desastrosa. Eu tive a oportunidade de visitar recentemente o Lixão de Marituba. Eu fui conhecer as terras quilombolas de Marituba, fazer diálogos com a população local, no mês passado, e construíram um lixão, que é uma coisa descabida. Poluiu o rio e é um cheiro insuportável para a população que sempre viveu lá. É uma devastação. Esse modelo de desenvolvimento nós não queremos. Nós queremos um modelo de desenvolvimento que coloque a sociedade a serviço da economia, da ganância de uns poucos, mas que a economia esteja a serviço da sociedade.

No seu governo, então, inclusive obras dessa natureza que possam justamente substituir a matriz energética seriam frutos de um diálogo

Todas elas serão pactuadas com as populações locais, ribeirinhas, indígenas, quilombolas, nada será feito sem diálogo.

Eu gostaria de saber sua posição sobre a necessidade de uma reforma da previdência e no seu governo ela seria proposta em que bases?

Esse é um tema chave. Tema atual. O governo Temer tentou impor goela abaixo a reforma da previdência para a sociedade brasileira. Não conseguiu sequer aprovar num congresso controlado por ele, dada a impopularidade daquela proposta. Toda sociedade, quando há um aumento da expectativa de vida, debate a questão previdenciária. É natural que seja assim. O que nós precisamos discutir aqui é o cerne desse debate. E aí eu quero dizer que a reforma da previdência proposta pelo governo Temer é inaceitável, é uma proposta criminosa. A reforma do Temer penalizava aposentadoria rural. Trabalhadores que trabalham a vida toda, nas piores condições possíveis iam ter dificultada a sua aposentadoria. Para trabalhadores de salário mínimo, que recebem benefício de prestação continuada, você estabelecer 65 anos como idade mínima para se aposentar, num país em que a expectativa de vida conforme a região e a classe social varia de 50 para 80 anos, é fazer com que milhões de pessoas se aposentem no caixão. Isso não pode ser assim.

No seu governo vai se aposentar com 50 anos, então?

Quem se aposentou com 50 foi o próprio Michel Temer. Veja, eu não quero debater em torno de idade mínima. Eu quero debater previdência em torno de outras questões. A nossa proposta em relação à previdência passa primeiro por a gente discutir as receitas e depois as despesas. A Constituição brasileira é clara. E ela diz que para a seguridade social, onde está colocada a previdência, as fontes de receitas fixas – PIS, Cofins, Pasep, contribuição social sobre o lucro líquido, dinheiro das loterias, todos eles constitucionalmente estão atrelados à seguridade social. O que eles fizeram? Criaram a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que começou com 20%, foi para 25% e o Temer aumentou para 30%, tirando dinheiro do  financiamento da seguridades social para pagar, inclusive, juros extorsivos da dívida pública. É óbvio que a previdência vai aumentar o déficit. Se você tira a entrada de recursos destinados à previdência, o déficit aumenta. Se você pegar as desonerações, a política de desoneração em folha, que também retirou dinheiro da previdência social, o déficit aumenta. A própria informalidade do mercado de trabalho que aumentou com essa reforma trabalhista criminosa gera menor arrecadação da previdência. Tudo isso é um ponto que precisa ser tocado. E aí do lado das despesas nós temos que mexer nas questões em que efetivamente há distorções. Onde há distorções, onde há privilégios, sobretudo na cúpula dos poderes. Nós queremos tocar aí. Não é admissível que cúpulas de poderes tenham aposentadorias especiais, com todo tipo de penduricalho, com salários de magnatas. Nós temos que mexer aí. Isso não é intocável e não pode ser visto pela sociedade como intocável. Isso não quer dizer demonizar funcionários públicos. Não dá para aceitar isso. Dizer que o gari tem privilégio, que o professor tem privilégio, o médico, o auxiliar de enfermagem tem privilégio. Não tem. São funcionários públicos que dedicam sua vida ao serviço público e devem ser valorizados. Nós temos que mexer em privilégios de cúpulas de poderes e temos que mexer cobrando dívidas das grandes empresas com a previdência, além de acabar com a DRU. Dinheiro da previdência tem que ir para a previdência.

Acabamos de ver na Assembléia Legislativa de São Paulo o aumento do teto do funcionalismo, inclusive dos próprios deputados. Será que para alcançar um equilíbrio orçamentário nós precisaríamos de uma nova classe de políticos?

Nós precisamos mudar o sistema político brasileiro e enfrentar esses privilégios. Não é aceitável e a sociedade não aceita mais que juiz, procurador, parlamentar, ministro, presidente, quem quer que seja, receba 30, 35 mil reais, enquanto o salário base dos professores é de 2,5 mil, 3 mil reais. Não é aceitável. Nós não queremos discutir o aumento do teto salarial do serviço público. Queremos reduzir esse teto porque as cúpulas neste sentido são as quem mais têm ganhos e conseguem aumentos de salários se beneficiando da própria lei que fazem.

O Estado brasileiro tem um déficit expressivo e todas as propostas que você apresenta dependem de recursos. A previdência é só uma parte do déficit. Como a gente faz para resolver esse problema da reduzida capacidade de investimento do Estado?

Nós defendemos um aumento profundo do investimento público no Brasil porque nenhum país saiu da crise sem investimento público. Como nós vamos fazer esse aumento de investimento público? Primeiro, nós precisamos mexer numa coisa.  Neste ano nós teremos 283 bilhões de reais a menos na arrecadação por causa das desonerações fiscais. É a chamada “bolsa-empresário”. Todo mundo gosta de falar muito e mal da Bolsa-família, mas ela representa 30 bilhões de reais no orçamento. Dizem: não se pode dar o peixe para as pessoas, tem que ensinar a pescar. Que tal, então, deixar o grande empresário pescar e deixar de dar desonerações abusivas.

E o senhor revogaria todas as desonerações?

Todas, não, há desonerações que são necessárias para setores que estão passando por situações específicas, para micros, médias e pequenas empresas, ou o Simples, que é parte de uma política de incentivo. Não revogaria todas elas, mas no Brasil as desonerações chegaram a 4% do PIB, enquanto a média mundial é de 2% do PIB. E boa parte dessas desonerações é dada sem nenhum critério. Cito o exemplo do caviar, do filé mignon e do salmão, como parte dos produtos que entraram na lista de desonerações. Não me parece que isso seja tão estratégico para a economia nacional e não me parece que seja evidentemente para o consumo popular. As desonerações que não têm razão de ser, precisam sim ser revertidas. Elas não foram conquistadas a partir de um cálculo econômico de necessidade para geração de emprego e renda. Foram conquistadas por lobbies no parlamento de setores industriais.

E muitas delas começaram num governo de esquerda?

Muitas delas no governo da Dilma. Foi uma crítica que nós fizemos de maneira cabal a Dilma naquele momento, quando em 2012 ela decidiu atender a agenda da Fiesp e criou um plano de desonerações – um equívoco brutal. O que a gente acha que houve de acerto nos governos do PT a gente diz aqui com a maior tranqüilidade. O que achamos que houve de erro, dizemos da mesma forma. Eu não tenho compromisso com o erro de ninguém. Agora voltando ao tema de como financiar uma política ousada de investimento público. Além da redução das desonerações, outro caminho é a redução da bolsa banqueiro. Não é razoável no Brasil nós termos a aplicação de uma taxa de juros para a dívida pública, para o mercado interno, muito acima do padrão internacional. Tem que haver a atuação dos bancos públicos para reduzir a taxa de juros e reduzir o spread bancário – a diferença de taxa de juros entre o que o banco paga para os correntistas e o que ele cobra quando vai emprestar. No Brasil, o spread é o segundo maior do mundo. Nós temos que mexer nisso. Isso virou uma torneira escancarada que não para de jorrar dinheiro público. Um terceiro elemento onde vamos conseguir dinheiro para fazer as políticas públicas necessárias é uma reforma tributária progressiva. Nós temos que fazer quem tem mais pagar mais. Quero citar apenas a tributação de lucros e dividendos, que existe em 34 dos 35 países da OCDE. Apenas a Estônia não tributa. No Brasil existia até 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu fazer renúncia fiscal e não voltou nunca mais. A tributação de lucros e dividendos geraria para o Brasil, segundo os tributaristas, em média, receitas de 60 bilhões de reais ao ano. Só este imposto. Com 50 bilhões por ano se criam e se mantêm um milhão de novas vagas na universidade pública.

O senhor tem criticado, com freqüência, os juros pagos pela dívida pública. O senhor defende uma renegociação unilateral ou uma moratória ou um calote nesses juros?

Esse é um tema que nós estamos debatendo. Uma das questões que nós temos clara em relação à dívida pública neste momento: é preciso baixar os juros. E existem instrumentos para o Estado fazer isso. Segundo, é preciso reestruturar e mudar o perfil da dívida pública brasileira, que hoje está vinculada a títulos de curto prazo e não a títulos de longo prazo. É preciso reestruturar o perfil dessa dívida para que a gente tenha menor volatilidade e o país possa planejar. Agora queria acrescentar uma última coisa. O percentual dívida/PIB no Brasil hoje está em 75%, menos que o dos Estados Unidos, que é mais de 100%, do Japão, que é 200% e de toda União Européia. Então usar o argumento de contenção da dívida para uma política de cortes sociais – porque a dívida estaria fora de controle sob esse ponto de vista – é algo inaceitável. Os 75% do PIB, aliás, só aumentaram com as políticas de cortes. O que aconteceu com o ajuste fiscal que foi feito? Quando corta investimento público cai emprego, cai renda e se arrecada menos no ano seguinte. O ajuste fiscal gera um novo desajuste.

Mas não há um limite para o endividamento?

É evidente que precisa ter limites. Exatamente por isso que nós temos que acabar com a farra dos juros. É exatamente por isso. Porque com os juros proibitivos que se cobram hoje no Brasil para a dívida pública, o endividamento se torna astronômico. E sem que esse recurso que entra seja utilizado para benefício da população.

Independentemente do custo do Estado, os serviços que ele presta não são minimamente satisfatórios. Na questão da segurança pública qual é a sua opinião sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro e qual seria a sua política para reduzir o número de óbitos que nós temos no Brasil?

Concordo que o gasto público no Brasil é muito mal feito, não é um problema apenas de arrecadação, é também um problema de como esse gasto público chega na ponta e chega nos serviços essenciais. Para falar de segurança pública, nós temos um modelo no Brasil que fracassou. É um modelo caro, violento e ineficaz. Há dez dias saiu a publicação do Atlas da Violência no Brasil. Os dados do Atlas são alarmantes. A taxa de homicídios no Brasil, de mortes violentas, é trinta vezes a da Europa. E é maior proporcionalmente que a da Síria, que é um país que está em guerra. O índice de mortes violentas no Brasil é como se um Boeing 747 caísse todos os dias – é o tanto de gente que morre. E essas mortes são segmentadas e expressam a desigualdade na sociedade, expressam, sobretudo, o racismo estrutural na sociedade brasileira. Um dos dados que me chamou muito a atenção no Atlas foi sobre o estado de Alagoas. Em Alagoas, o índice de homicídios para pessoas brancas é de 4 para cada 100 mil habitantes, que é o índice dos Estados Unidos. O índice de homicídios para pessoas negras é de mais de 60 para cada 100 mil habitantes, que é o índice de El Salvador, o país mais violento das Américas. Isso mostra o fracasso de uma política de segurança militarizada que gerou uma das policias que mais matam no mundo, a do Rio de Janeiro, e também uma das que mais morrem.

Como superar isso?

A nossa proposta é o ciclo completo de polícia. Isso é uma proposta que já é uma PEC, a PEC 51, que está parada no Senado Federal, como tudo que enfrenta interesses poderosos, nesse caso a bancada da bala. O ciclo completo é a desmilitarização das polícias, acabar com esse ranço que ficou da ditadura militar – a maior parte das polícias do mundo não são militarizadas. E ter uma polícia que seja ao mesmo tempo preventiva e ostensiva, mas também cumpra o papel de polícia investigativa e judiciária. Isso permite com que a gente concentre os  esforços de segurança pública na inteligência e na investigação. Esse deve ser o centro da coisa. Por que tem tanta morte violenta no Brasil? Um dos maiores responsáveis por isso se chama tráfico de armas e munições, que não tem uma fiscalização adequada, não se combate tráfico de armas com Rota na rua. Não se combate tráfico de armas com repressão e tropa de choque.  Combate-se tráfico de armas com inteligência, investigação e desbaratando quadrilhas. Para nós esse é um tema essencial e as mudanças vão acontecer com um novo modelo de policiamento. Essa insegurança toda fez com que as pessoas ficassem com muito medo. As pessoas estão com medo. E o medo faz a gente ficar vulnerável ao ódio e à agressividade.

Uma das formas de conter a violência é gerar mais emprego, mais oportunidades. Mas para gerar mais empregos é preciso atrair o investidor. O senhor não acha que essas propostas de taxar o capital nós não podemos virar uma Venezuela?

Eu concordo que a violência também é resultado de problemas sociais gravíssimos. É evidente. Um país tão desigual como o nosso, com tanta miséria e convivendo com tanta riqueza não tem como ser um país tranqüilo em que se viva como num conto de fadas. A violência é, em última instância, um problema social e um problema cultural. Precisamos lidar com políticas públicas, investimento em educação, geração de emprego e renda e no combate às desigualdades no país. E aqui reitero algo que disse numa resposta anterior. Nenhum país sai da crise, gera emprego e gera renda sem investimento público. O que aconteceu em 2012 com a Dilma? Ela achou que a salvação do Brasil era o investimento privado. Então ela desonerou as grandes empresas, achando que o investimento privado viria. Facilitou o crédito achando que o investimento privado viria. Mas as empresas pegaram o dinheiro das desonerações e foram aplicar no mercado financeiro sem gerar nenhum emprego. Foi isso que aconteceu com o setor privado no Brasil depois de 2012. Não se sai de crise sem focar no investimento público. O Estado tem que cumprir um papel essencial nisso, inclusive de mobilizar o setor privado.

De acordo com o anuário brasileiro de segurança pública uma mulher é estuprada a cada onze minutos no Brasil. E uma é assassinada a cada duas horas. Se eleito o que você faria para o Brasil ser um país menos violento com as mulheres?

A desigualdade no Brasil tem várias faces. Ela não é só uma desigualdade de renda, de riqueza, de patrimônio. É uma desigualdade racial profunda e é também uma desigualdade de gênero., inclusive na questão salarial. Em pleno século 21 as mulheres ainda ganham menos do que os homens para o mesmo tipo de trabalho. Inclusive nas questões de poder. As mulheres são 52% da população brasileira e 10% do Congresso Nacional. Nós precisamos ter políticas para mudar isso e também para a questão da violência. Para as mulheres vítimas de violência, nós precisamos trabalhar com redes de acolhimento, para além do que a lei Maria da Penha já oferece, redes que permitam a essas mulheres denunciarem e serem acolhidas. Muitas vezes a mulher tem uma dependência econômica e não denuncia porque moram com o agressor e não tem para onde ir. Depois é preciso ter uma política educativa. Questão de gênero precisa ser discutida no sistema educacional brasileiro. É inadmissível que a gente seja pautado por uma bancada fundamentalista, que diz que gênero parece uma coisa absurda para ser discutida nas escolas.

O senhor quer intensificar a discussão de gênero nas escolas?

Acredito que a escola não pode ser apenas para formar os adolescentes e os jovens para fazer uma prova. Escola não pode ser apenas para formar as pessoas para o mercado de trabalho. Escola tem que formar a nossa juventude para a cidadania, para os desafios que vão enfrentar na vida. E a questão do machismo, do patriarcado na sociedade brasileira é um dos desafios que precisa ser enfrentado. E a desigualdade de gênero precisa ser debatido nas escolas assim como a diversidade sexual,  que faz do Brasil o país que mais mata população LGBT no mundo. O tabu, a ausência do debate, gera ódio, gera preconceito, gera agressões, gera violência, então é essencial ter uma política integrada para mulheres, debatida com os movimentos de mulheres. E queria aproveitar a oportunidade para entrar num tema, aqui a gente não foge de tema polêmico. A minha pré-candidatura e a nossa campanha não é feita por marqueteiro, que diz o que candidato tem que falar. Não fala isso, não fala aquilo. Aqui quero evocar o exemplo das mulheres argentinas, que pararam Buenos Aires na última semana e conquistaram, na Câmara, o direito ao aborto, que também é uma questão de saúde pública – quatro mulheres morrem por dia no Brasil por complicações em abortos precários. Esse debate das mulheres é central para nossa proposta. Nós temos um grupo de trabalho que está pensando políticas específicas para mulheres. Eu tenho como companheira de chapa, com muito orgulho, a Sonia Guajajara, indígena, nordestina, que a primeira vice indígena numa chapa presidencial neste país.

E quais são seus planos para a área de educação?

Sobre educação, para além desse tema que eu já toquei sobre currículos e sobre a importância de ter pensamento crítico nas escolas, nós temos que focar na questão do financiamento. E olha, não adianta vir com demagogia, não adianta candidato que vier sentar nesta cadeira na IstoÉ e dizer que sua prioridade é a educação. E não imaginar a emenda constitucional 95, que não tem como priorizar a educação no Brasil com um teto de gastos que congela investimento público por 20 anos. Isso é um congelamento do futuro. Por isso que nós temos que revogar e nós vamos revogar a emenda 95. Investimento em educação pública temos dois níveis: educação básica, que é essencial, e também o ensino superior. Nós temos que pensar educação básica no Brasil. O sistema nacional de educação aprovou o custo aluno – qualidade inicial (Caqi), com 50 bilhões ao ano para ser destinado para o piso dos professores, para plano de carreira, para equipamento das escolas e dar melhores condições de ensino nas escolas públicas. Eu sei o que é uma escola pública. Eu dei aula três anos em ensino médio em escola na periferia de São Paulo. Eu sei em que situação estão os professores. Eu sei o nível de desânimo dos alunos. Eu sei como o currículo é muitas vezes desvinculado da realidade das pessoas, sei que não há equipamento que funciona muitas vezes. Nós precisamos é mexer aí. O nome disso é investimento. Não adianta fazer lero-lero, firula, falar isso ou falar aquilo. Tem que investir mais em educação básica e também no ensino superior público, verba pública tem que ir fundamentalmente para o ensino superior público.

O que o senhor pensa a respeito das cotas?

Sou integralmente a favor das cotas. É uma forma de reparação histórica que tem que ser, inclusive, ampliada. Sabe por quê? Eu vejo gente falando que os cotistas não têm méritos, mas eu quero saber como se pode falar de mérito numa corrida de 100 metros, onde alguns começam 60 metros na frente. Quem ganha ganhou por mérito? O Brasil é isso, é um corrida de 100 metros onde alguns tiveram oportunidade de estudar em boas escolas, tiveram a oportunidade de comer bem, de ter uma situação familiar tranqüila, de ter tudo o que poderiam ter, e outros não tiveram oportunidade de nada, viveram em situação de violência, estudaram em escolas ruins. As situações são iguais para essas pessoas? A cota é uma forma de reparação. E ainda falando de mérito – os estudos sobre desempenho de assuntos cotistas mostra que ele é igual ou superior ao da média dos alunos.

E a saúde pública no Brasil? Pode melhorar?

Eu sou defensor do SUS, acho que o sistema único de saúde no Brasil é um modelo muito bom, que não funciona do jeito que deveria porque é sub-financiado. É isso que está em jogo no SUS. O SUS é um modelo de atendimento universal à saúde, que atende toda a população, independentemente da sua renda, da sua condição, da sua região, só que atende de uma maneira muito aquém do que deveria. Quem já passou por fila de posto sabe o que estou falando, falta médico, falta remédio, sobra fila. Essa é realidade do SUS, não porque o modelo seja ruim, mas não há o financiamento adequado. O financiamento de saúde pública no Brasil hoje é 3,8% do PIB, em países com sistemas universais como o nosso, a média é de 8% do PIB para financiar a saúde. Nós temos que aumentar o financiamento da saúde. Isso passa também por reduzir as renúncias fiscais para hospitais filantrópicos que muitas vezes atendem pouco o SUS, e reduzir renúncias fiscais para grandes empresas de plano de saúde. Tem que reduzir essas renúncias para investir no SUS, valorizando a atenção primária. Nós temos que valorizar a saúde da família, nós temos que valorizar a prevenção porque ali que tudo começa. Se houver um bom trabalho de agente comunitário de saúde, de médico da família, se tiver um bom trabalho preventivo, junto com uma boa política de saneamento básico – 45% dos brasileiros não tem acesso a saneamento básico; se tiver tudo isso você desafoga a atenção secundária e terciária, que é de exames e procedimentos complexos. Nós temos que investir em saúde primária.

O senhor é a favor do aborto?

Eu não sou a favor do aborto, ninguém é, na minha opinião. Sou a favor do direito das mulheres abortarem.

O que o senhor acha da redução da maioridade penal? 

Sou contra a redução da maioridade penal. Existe uma lógica que foi vendida para parte da sociedade brasileira de que botar mais gente na cadeia resolve os problemas. Quem pensa com essa lógica precisa nos explicar porque nos últimos dez anos a população carcerária dobrou e o Brasil se tornou o terceiro país em população carcerária do mundo e a sociedade não está mais segura por isso, ao que parece. A população de presos dobrou e a população está mais insegura. Vamos parar para pensar e talvez imaginar que esse não seja o caminho, de entulhar gente em masmorras que se dizem de recuperação, recuperação coisa nenhuma. Ás vezes a pessoa entrou lá por um crime leve e sai de lá PHD no crime. Todo mundo sabe como funciona. Você acha que botar jovem que cometeu pequena infração neste sistema penitenciário brasileiro vai resolver o problema. Isso não quer dizer defender a impunidade. Se há um adolescentes que estupra ou que mata, tem que ser punido. O Estatuto da Criança e do Adolescente já coloca esses caminhos de punição. O que não pode é achar que cadeia é solução para a sociedade ficar mais segura.

E sobre a descriminalização das drogas?

Nós precisamos fazer um debate sério com a sociedade brasileira sobre o que deve ser feito. A política, nos últimos 30 anos, foi a da chamada guerra às drogas, exportada pelos Estados Unidos. Então você pega forças militares do Estado e faz o suposto combate ao narcotráfico, que virou uma maneira de militarizar favelas, periferias, morros e de matar a juventude pobre e negra. Vamos pensar duas coisas: primeiro, vocês acham mesmo que combater o narcotráfico é pegar o cara que está na laje da favela, que a cabeça do narcotráfico está no barraco de uma favela? A cabeça do narcotráfico está ligada ao poder, aliás tem helicóptero cheio de cocaína de senador da República e está livre, leve e solto até hoje. Outra pergunta: o fato de ser proibido faz com que alguém não use? Quem quer usar, usa. O narcotráfico não diminuiu em 30 anos de guerra às drogas. Ao contrário, as facções só cresceram. Essa política está errada, totalmente errada. Nós temos que discutir com a sociedade a descriminalização e a regulação do uso das drogas

Então a maconha poderá ser vendida na padaria?

Essa é a ideia simplista que as pessoas estabelecem. Existem várias formas de regulação, O Uruguai fez uma delas, o Canadá fez outra. Essa política de regulação tem que ter os seus critérios, é evidente, você tem que restringir o uso e isso precisa ser discutido com a sociedade. O que não se pode é reproduzir uma ideia falaciosa de que vão resolver na bala.

E outras drogas também seriam descriminalizadas?

Primeiro acho que a descriminalização deve ser debatida com a sociedade brasileira e nós vamos encontrar o modelo pelo qual essa descriminalização será feita. Segundo, o que eu tenho claro que não é alternativa é você achar que vai combater venda ilegal de drogas militarizando favela e matando gente. É isso que tem se feito no Brasil. Tem se penalizado um jovem que está lá de “aviãozinho” e ele vai para cadeia, enquanto os grandes donos do tráfico no Brasil, que fazem importação, que refinam a droga, muitas vezes estão andando de terno e gravata nos centros do poder.

Aproveitando o clima de Copa do Mundo, o senhor defende a taxação para venda de jogadores até 23 anos para que eles não saiam do Brasil. Como isso funcionaria?

Essa proposta foi formulada por um dos maiores estudiosos de esportes do Brasil , que é o Flávio de Campos, que está coordenando nosso programa de esportes e o sentido dessa proposta é que ela valoriza o futebol brasileiro. Hoje, os grandes clubes de fora, como o Barcelona e o Real Madri têm olheiros que acompanham os jogadores desde a várzea  em São Paulo, no Rio, e em outros  grandes centros. Se o jovem se destaca, eles já pegam e levam para fora. Nós temos que criar condições para valorizar o futebol brasileiro. Isso não significa que o jogador não possa jogar no exterior. Se o clube fizer uma oferta a decisão cabe ao jogador. Nós ainda não temos uma proposta de valor dessa taxa. Mas sua arrecadação poderia estar atrelada a um fundo de incentivo ao esporte popular, por exemplo.

Para finalizar, a gente vê que essa é uma eleição com muitos indecisos, muita gente querendo votar branco e nulo. Por que o senhor é o melhor candidato para ser o novo presidente da República?

Nós precisamos tirar o Brasil dessa crise. Para tirar o Brasil dessa crise nós precisamos ter ousadia. Não pode ser com lengalenga, mas é necessário ter ousadia para colocar o dedo na ferida, ousadia para enfrentar os privilégios de quem tem, ousadia para enfrentar um sistema político que definitivamente está falido, incorporado e sequestrado por 1% de uma oligarquia econômica. A nossa pré-campanha não vai ter financiamento de banqueiro, de empreiteira, de grande empresa, para depois ficar com rabo preso. E não poder governar para as maiorias. A gente sabe bem, em geral quem paga a banda escolhe a música. No nosso caso está sendo feita uma campanha coletiva, com muitas mãos, com muita gente, uma campanha movimento, construindo desde baixo que não vai ter medo de colocar o dedo nas feridas e tocar em tabus. Não é campanha de marqueteiro, não é campanha de maquiagem. É uma campanha para apresentar soluções para os grandes problemas do país. E que não vem de uma maneira tradicional. Eu sou o candidato mais jovem do país a disputar a presidência da República, tenho ao meu lado na chapa a Sonia Guajajara, primeira indígena a entrar numa chapa presidencial no país, estou com o PSOL, com o PCB, com os movimentos sociais, estou numa aliança incrível. O PSOL é um partido com grande coerência, partido que não entrou em nenhuma dessas listas, do que quer que seja, sempre esteve ao lado das maiorias sociais, que defende representatividade na política e que abriu de maneira ousada e generosa para uma aliança com vários setores da sociedade. Nós estamos construindo um processo de baixo para cima, um processo para reduzir o poder dos políticos e aumentar o poder das pessoas para governar o Brasil de um outro jeito. Por todas essas razões eu acho que nossa pré-candidatura tem todas as condições de tirar o Brasil desse abismo em que ele está e resgatar a esperança do nosso povo num outro futuro.