Histórias Afro-Atlânticas/ Masp e Instituto Tomie Ohtake, SP/ até 21/10

DOMINAÇÃO Mostra confronta perspectiva europeia de obras como “Negro Woman with Child” (1641), de Eckhout (Crédito:Divulgação)

Entre a mulher negra, enfeitada e estetizada, cercada por ícones de uma terra tropical e exótica, pintada por Albert Eckhout em 1641 (“Negro Woman with Child”) e a mulher que ameaça com um facão um policial que aponta sua arma de fogo para a cabeça de um jovem, no chão (“Mãe Preta ou a Fúria de Iansã”), que Sidney Amaral pintou em 2014, existem cinco séculos de camadas de histórias. As duas mulheres, em questão, são mães. Estão representadas com seus filhos, mas em condições extremas. A primeira, apesar de escravizada, vive em um aparente paraíso pacificado. A segunda é uma mulher do século 21, que vive a perpetuação das desigualdades econômicas, políticas e sociais instauradas pelo sistema escravagista, mas que em seu gesto demonstra não abdicar da luta pela liberdade. A primeira tela é pintada por um europeu branco, Eckhout (1610-1666), que integrou a comitiva de artistas e cientistas encarregados de documentar o Novo Mundo durante a permanência do governo holandês em Pernambuco. Em sua missão etnográfica, o holandês documentou fauna, flora e tipos humanos brasileiros à luz de uma estética flamenga. Mas sua produção, lida pelas cortes de sua terra como documentação etnográfica e fiel à realidade, hoje é claramente entendida como uma escritura da perspectiva da dominação europeia. Essa leitura fica ainda mais acentuada na exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, organizada pelo Masp e o Instituto Tomie Ohtake, com cerca de 450 obras de 210 artistas brasileiros e estrangeiros, desde o século 16 até hoje.

A tela do paulistano Sidney Amaral, artista negro falecido em 2017 aos 44 anos, expõe a violência policial nas periferias das cidades brasileiras. Como o título indica, “Mão Preta oua Fúria de Iansã” traça um paralelo entre a mulher que defende seu filho e suas convicções com unhas e dentes, e Iansã, deusa guerreira dos ventos e das tempestades, mãe do entardecer, na mitologia ioruba. “O que fiz foi transpor um mito para a realidade das ruas paulistanas”, disse Sidney Amaral à revista seLecT, em 2017. Eckout está no Masp, e Amaral está no Instituto Tomie Ohtake, no núcleo Emancipações, Ativismos e Resistências, que expõe estratégias de insurreição e luta, desde a escravidão até a violência da sociedade contemporânea. Altamente politizado, esse núcleo rende homenagem às vítimas do racismo estrutural (Amarido Souza, Trayvon Martin, Tyisha Miller), a ativistas assassinados (Marielle Franco), encarcerados (Rafael Braga) e outras tragédias nossas de cada dia.

PERPETUAÇÃO Cenas representadas pelo pintor Sidney Amaral apontam que Brasil não encerrou o sistema escravocrata

Assim, a exposição alterna pontos de vista do dominador com a emancipação de artistas afrodescendentes que hoje assumem a narrativa da própria história. As vozes emanam de diferentes temporalidades e geografias, abarcando Brasil, Caribe e Estados Unidos, na impressionante pesquisa levada a cabo pelos curadores Adriano Pedrosa, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz, Ayrson Heráclito e Tomás Toledo.

DIVERSIDADE Na montagem, curadoria
aproxima diferentes temporalidades e geografias

Mapas, Vida Cotidiana, Festas e Religiões, Retratos, Modernismos Afro-Atlânticos e Rotas África-Jamaica-Bahia são os outros núcleos da mostra, ampliando consistentemente o olhar sobre as histórias iniciadas a partir dos deslocamentos Atlânticos e sobre a vida na África, no Caribe e nas Américas, nos séculos 17 ao 21. Integram esse panorama inédito — não há noticia de pesquisa tão completa na história das exposições — importantes artistas internacionais como Ibrahim Mahama, Nona Faustine e Theaster Gates.

Mas o Brasil prepondera a cartografia da mostra, com artistas negros acadêmicos, como Antônio Rafael Pinto Bandeira; modernos, como Emanoel Araujo e Rubem Valentim; contemporâneos, como Sonia Gomes, Flávio Cerqueira, Jaime Lauriano, Moises Patricio e Nadia Taquary; e aqueles que já foram considerados “fora do eixo”, como Maria Auxiliadora e Artur Bispo do Rosário. A justificativa da curadoria é simples: o Brasil é um território central nas narrativas afro-atlânticas por ter recebido nada menos que 46% dos cerca de 11 milhões de africanos que desembarcaram compulsoriamente nas Américas e Caribe ao longo de 300 anos. A exposição acontece no 130º aniversário da Lei Áurea no Brasil, o último país a abolir a escravidão mercantil.