Após sua esmagadora e inesperada vitória eleitoral, o esquerdista Luis Arce deverá enfrentar a crise econômica e curar as feridas de uma Bolívia polarizada pela convulsão social que acabou com o governo de Evo Morales em 2019.

A eleição deste domingo transcorreu em um clima de paz, embora não isenta de temores a que se repetissem os distúrbios que deixaram mais de 30 mortos em 2019, depois da contestada votação, posteriormente anulada, na qual Morales obteve uma nova reeleição.

“É preciso curar as feridas dos bolivianos, embora não vá ser um processo tão automático”, disse à AFP a cientista política Maria Teresa Zegada, da Universidade Mayor de San Simón.

“Tomara que Arce e o Movimento ao Socialismo (MAS) tenham aprendido esta lição democrática com a experiência de 2019 e que podem se abrir ao diálogo para conseguir uma convivência democrática, que não existiu nos últimos anos do governo Morales” (2006-2019), acrescentou.

Analistas estimam que a vitória contundente de Arce se deveu, principalmente, ao apoio incondicional que Morales tem entre os indígenas, que constituem 41% dos 11 milhões de habitantes da Bolívia.

Além disso, os adversários do MAS não foram unidos à eleição, apresentando sete candidatos, embora dois tenham desistido nos últimos dias em uma tentativa frustrada de aglutinar o voto anti-Evo. O ex-presidente de centro Carlos Mesa (2003-2005) terminou as eleições em segundo lugar, com 20 pontos a menos que Arce, segundo as projeções privadas em meio a uma lenta apuração oficial.

Também favoreceu Arce a criticada gestão do governo transitório da conservadora Jeanine Añez, que sucedeu Morales após sua renúncia.

“O resultado é consequência dos gravíssimos erros das forças opositoras ao MAS. Mesa arrastou sua frágil organização política à posição de não se unir ou negociar nada, como pedia o grosso da população”, disse o cientista político Carlos Borth à rádio Pan-americana.

Os bolivianos também depositaram suas esperanças em Arce para resolver a crise econômica resultante do novo coronavírus e da queda dos preços do gás natural, o principal produto de exportação da Bolívia.

Arce é visto como o artífice do “milagre econômico” que a Bolívia viveu durante o governo de Morales, quando ele era ministro da Economia, período no qual o país alcançou cifras históricas de crescimento de até 6% e a pobreza diminuiu de 60% a 37%, segundo dados oficiais.

– “Um país diferente” –

Mas agora o panorama é mais complicado, advertem os analistas.

“Avizinha-se ao próximo governo um país diferente, com muitas carências, e Arce apresentou ofertas muito claras que geraram muitas expectativas para resolver as urgências nacionais”, diz Zegada.

Em sua campanha, Arce propôs injetar ao Estado 8 bilhões de dólares para enfrentar a crise, com recursos de créditos internacionais, negociar o não pagamento da dívida externa anual, criar um imposto aos mais ricos que representam 1% da população e substituir importações com produção nacional.

Os analistas descartam que haja uma nova convulsão no curto prazo, devido à vitória por maioria absoluta no primeiro turno do afilhado político de Morales.

Arce contará com maioria no Congresso, segundo projeções, mas não alcançaria os 2/3 que o partido tinha até agora e que lhe permitiam aprovar leis sem precisar buscar acordos com outras bancadas.

– “O papel de Evo” –

Arce se beneficiou do capital político construído durante décadas por Morales, que atuou como chefe de sua campanha da Argentina, onde está refugiado.

Morales teve uma participação constante nas redes sociais durante a campanha e prometeu voltar à Bolívia se seu candidato vencesse.

“É questão de tempo. Meu grande desejo é voltar à Bolívia”, disse nesta segunda Morales, alvo de uma ordem de prisão na Bolívia por terrorismo e financiamento do terrorismo durante a convulsão social do ano passado.

Os analistas consideram que Arce deverá fazer uma “leitura reflexiva” do novo cenário político e definir o papel de Morales em seu governo.

“O novo governo deve adotar uma posição para evitar novamente discriminações entre os bolivianos, a soberba e a corrupção, tudo isso deve mudar”, disse à AFP Guery Chuquimia, analista político e antropólogo da Universidade Mayor de San Andrés.

Arce faz parte do grupo mais próximo e incondicional de Morales, que em janeiro o designou como candidato à Presidência do MAS, uma honra que desde 2002 sempre foi do líder indígena.

Zegada considerou que Arce deve deixar claro se planeja governar com “autonomia” diante de seu padrinho político ou se seguirá “a linha de Evo”.