Na quarta-feira, a Justiça da Suíça anulou a sentença de 1989 que condenou o técnico Cuca por manter relação sexual sem consentimento com uma menina de 13 anos – o caso aconteceu em 1987, quando ele era jogador do Grêmio, durante um excursão do time ao país europeu. A defesa solicitou a revisão do caso argumento que Cuca não contou com um representante legal e foi julgado à revelia. O pedido de um novo julgamento foi aceito, mas o Ministério Público alegou não ser possível realizá-lo pelo fato de o crime ter prescrito. O órgão, então, sugeriu a anulação da pena e o fim do processo, o que acabou sendo acatado pela Justiça.

Mas, afinal, Cuca é inocente? Segundo Leonardo Pantaleão, especialista em Direito e Processo Penal, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, a extinção da sentença condenatória faz o treinador voltar a ter o status de ser presumidamente inocente. Porém, é incorreto afirmar que Cuca foi inocentado, uma vez que não houve uma mudança de veredicto.

“Existe a presunção de inocência em favor dele, mas eu só poderia dizer que ele é inocente se houvesse uma avaliação do mérito da discussão criminal e o e mérito ficasse favorável ao Cuca”, explica. “O que aconteceu é que o mérito não foi reavaliado, simplesmente identificou-se um vício formal por ausência de defesa técnica e isso comprometeu o desenrolar do processo, e, consequentemente, gerou a anulação do mérito condenatório. Quando você tem a anulação é restabelecida a presunção de inocência, mas afirmar que ele é inocente dependeria de uma análise do mérito, o que não foi feito.”

Acácio Miranda, doutor em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa, e mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada, entende que Cuca é “tecnicamente inocente”. O especialista aponta uma falha na Justiça da Suíça no que diz respeito às etapas do julgamento do treinador, citando o fato de ele ter sido condenado sem direito à defesa.

“O mérito é como um vagão sem um trilho. Aquele vagão não vai entrar se nós tivermos qualquer problema no trilho, e o que nós temos aqui é o que nós temos aqui como a uma imperfeição, uma incongruência”, explica. “A gente não pode afirmar que existia uma condenação porque a partir do momento que há anulação, aquilo deixou de existir.”

Ambos os especialistas ressaltam ainda que não existe julgamento à revelia na esfera penal. Isso porque o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, estabelece que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não prove sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público qual se assegurem todas as garantias necessárias para a sua defesa”.

“Em termos de Direito Penal, não se admite o julgamento à revelia, mas ele acaba acontecendo em outras esferas. Quando a gente pensa no Direito Civil, o que está em discussão são bens materiais, os quais você pode abrir mão, na teoria. Já na esfera penal, você não pode abrir mão da sua liberdade”, diz Acácio. “Não tem como colocar em segundo plano o princípio da presunção de inocência. Portanto, se ele não tem uma sentença definitiva presume, sim, inocente. Mas uma coisa é presumir, outra coisa é atestar inocência”, comenta Leonardo.

Cuca contratou advogados para reabrir o processo após se demitir do Corinthians, em 27 de Abril de 2023. Apesar da rejeição da torcida, o então presidente Duílio Monteiro Alves bancou a contratação. Contudo, a passagem do treinador pelo clube durou apenas seis dias. À época, o técnico, sob forte pressão, pediu demissão citando um “massacre” das redes sociais e afirmou que estava atendendo a um pedido da família.

O técnico recebeu propostas no ano passado, mas recusou porque, seu foco estava em provar que era inocente. Com a extinção do caso, o clube que decidir contratar Cuca vai estar assegurado juridicamente de que não há histórico de condenação do ponto de vista jurídico, mas terá de lidar com a polêmica do ponto de vista moral.

ENTENDA O CASO “ESCÂNDALO DE BERNA”

Alex Stival, o Cuca, Henrique Arlindo Etges, Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, então atletas do Grêmio, foram detidos sob a alegação de terem tido relações sexuais com uma garota de 13 anos sem consentimento. O caso ocorreu no hotel Metrópole, em Berna, na Suíça, em 1987, ano em que o time gaúcho fez uma excursão pela Europa.

De acordo com a investigação da polícia local, a garota pediu autógrafos e camisetas para os jogadores, que, então, a levaram para dentro do quarto e abusaram dela. Ela registrou queixa na polícia horas depois sob a alegação de ter sofrido violência sexual

Segundo publicou o Estadão em 7 de agosto de 1987, a versão do Grêmio, naquela época, era de que a jovem invadiu o quarto em que estava os atletas para pedir flâmulas, camisetas e autógrafos e depois saiu. No mesmo dia, o Estadão reportou que Eduardo e Henrique haviam admitido ter tido relação sexual com a garota, mas de forma consensual. Fernando e Cuca negavam qualquer participação. O advogado da vítima, porém, contestava a versão e afirmava que a menina reconheceu, sim, o então jogador do Grêmio como um dos que participaram do ato.

Tanto Cuca quanto os outros três colegas do Grêmio permaneceram em cárcere por 30 dias. Depois desse período, retornaram para o Brasil após darem depoimento por mais de uma vez e ser encerrada a fase de instrução do processo.

Cuca, Henrique e Eduardo foram condenados em 1989, portanto dois anos depois do episódio. A Justiça suíça condenou os brasileiros a 15 meses de prisão e a pagamento de US$ 8 mil. Mas eles nunca cumpriram a pena estipulada para o crime, que prescreveu em 2004. Fernando foi condenado a três meses de prisão e ao pagamento de U$ 4 mil por ser considerado cúmplice.

Cuca foi enquadrado no antigo artigo 187 do Código Penal da Suíça, que prevê prisão de até cinco anos por envolvimento em um ato sexual com uma criança menor de 16 anos. A Justiça entendeu que não houve violência por parte de Cuca e dos outros jogadores, mas sim “coerção” e “fornicação”, segundo afirmou ao Estadão uma porta-voz do Tribunal Superior de Berna, responsável por dar a sentença há 34 anos.