31/10/2024 - 11:44
“Não há nada mais difícil de lidar, mais perigoso de conduzir ou mais incerto de sucesso
do que a introdução de uma nova ordem de coisas.”
“O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel
“Se você tem mais medo da mudança do que da desgraça,
você não impede a desgraça.”
“Andorra”, de Max Frisch
Em “Megalópolis”, Cesar Catilina (Adam Driver) é um arquiteto vencedor do Prêmio Nobel por ter inventado um material “mágico” e revolucionário, o megalon. Capaz de servir de matéria-prima para grandes construções, que se adapta ao ambiente e ao corpo praticamente de maneira orgânica, o material faz parte do sonho de seu criador para a construção de uma nova cidade.
Ambicioso e visionário, o protagonista vê em sua criação, e no cargo que ocupa na cidade de Nova York Roma como chefe do departamento de design, a oportunidade de substituir o passado arcaico de uma sociedade “neorromana” por um futuro mais justo, sustentável e que atenda às reais necessidades da população.
Mas nessa história, tal qual na história de toda a humanidade, nenhuma grande mudança acontece sem encontrar resistência, geralmente de uma classe que se beneficia da manutenção do status quo. Em Nova Roma não é diferente. Na metrópole chefiada pelo prefeito Cicero (Giancarlo Esposito), políticos, banqueiros e suas famílias vivem muito bem, obrigado, enquanto boa parte da população chafurda na pobreza e decadência.
Essa, em parte deposita esperança no projeto futurista de Catilina, mas enxerga e é afetada pelo rastro de destruição que suas implosões deixam pelo caminho. Catilina aprendeu a manipular o tempo e a matéria, mas não a opinião pública e o vácuo (ainda?). Dois objetos não podem ocupar o mesmo espaço, assim como Nova Roma parece não comportar ao mesmo tempo o vislumbre visionário de Catilina e o pensamento limitado e imediatista de Cicero, adepto do pão e circo romano.
Entre os dois, duas mulheres conectam passado e presente desse conflito, Sunny Hope (Haley Sims), esposa do arquiteto cuja morte permanece envolta em mistério, e Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), filha do prefeito, uma bon-vivant que começa a trabalhar com Catilina e, posteriormente, terá um envolvimento amoroso com ele.
É nessa dicotomia entre passado e futuro, fantasia e ficção científica, bem contra o mal, que Coppola (ou Catilina?) manipula o espaço e o tempo do cinema em busca de construir as bases de sua fábula farsesca com pitadas de romance shakespeariano, seu épico-romano-futurista, seu filme-manifesto pela possibilidade de voltarmos a sonhar o mundo, um mundo, por meio do cinema.
Coppola, assim como Dziga Vertov em “Um Homem com uma Câmera” (1929), clássico documentário do cinema soviético, dá um salto de fé em direção a uma utopia possível (no filme), e nos mostra que o cinema, mais que qualquer outra arte, é capaz de borrar a fronteira entre o real e o sonho.
Se no filme soviético um dos porta-vozes artísticos da Revolução Russa manipula tempo e espaço e transforma sua câmera nos nossos olhos, aqui, Coppola mostra que o cinema é muito mais do que cabe em uma tela enorme. Em sessões especiais, como a do encerramento da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, nesta quarta, 31, e no Festival de Cannes deste ano, colocou parte da encenação de seu filme fora da tela, dentro da sala de cinema.
Durante uma cena em que o personagem de Adam Driver dá uma entrevista coletiva, um ator entra na sala com figurino adequado ao do filme e interage com o arquiteto lhe fazendo perguntas, como se nós mesmos estivéssemos presenciando o evento. Uma pena que seja impossível que todas as sessões em todos os cinemas do mundo possam contar com essa experiência imersiva.
Coppola, que nunca se dobrou às exigências do sistema de estúdios em detrimento de sua visão artística, mostra mais uma vez porque é um dos cineastas mais criativos e importantes da história do cinema. Se ninguém quiser financiar seus filmes, ele tira dinheiro do próprio bolso para tal. Se a tela for uma limitação para sua criatividade, ele a expande e pinta seus sonhos imagéticos com pinceladas de realidade.
Quase 130 anos após a invenção do cinema, um cineasta de 85 anos, que muitos já consideravam aposentado, mostra que ainda há muito o que fazer nessa arte, assim como Cesar Cantilina diz ao final de “Megalópolis”, quando vê implantado seu projeto de utopia, e entende que tudo aquilo ainda é apenas o começo. CINEMA.
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