Analistas e ex-diplomatas brasileiros consideraram uma aposta arriscada o apoio dado pelo presidente Jair Bolsonaro, na mesma linha de Donald Trump nos Estados Unidos, ao autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó.

Os principais receios vêm do fato de a maior potência da América Latina romper assim com uma tradição diplomática de equidistância e até mesmo de se envolver pela primeira vez em um século e meio em um conflito armado com um país vizinho.

O embaixador Rubens Ricupero, ex-chefe da legação brasileira em Washington, disse ao jornal O Globo que, sem uma solução rápida para a crise com o governo de Nicolás Maduro, “haverá consequências imprevisíveis para a região”.

De acordo com Ricupero, Bolsonaro – crítico ferrenho da “ditadura” bolivariana – criou “um precedente preocupante”, mas “em um caso extremo”, dada a gravidade da crise em um país com o qual o Brasil compartilha uma fronteira de 2.200 quilômetros.

“Uma situação impossível foi alcançada (…) Não havia outra solução no horizonte. Nenhum dos lados [Maduro e a oposição] queriam um diálogo”, destacou.

Onze dos 14 países do Grupo Lima, incluindo o Brasil, assim como os Estados Unidos e o Canadá, reconheceram Guaidó. Maduro obteve o apoio do México, Cuba e Nicarágua na região, assim como da Rússia e da China, que advertiram contra qualquer tentativa de interferência externa nos assuntos internos venezuelanos.

– Amorim: “Cruzadas que não são nossas” –

O ex-chanceler Celso Amorim, arquiteto da diplomacia Sul-Sul do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), disse que “o Brasil está assumindo uma posição de cruzada que não é compatível com sua diplomacia”.

“Estamos embarcando em cruzadas que não são nossas (…) O apoio a Guaidó é uma intervenção”, declarou Amorim em entrevista por telefone à AFP.

O ex-diplomata, que também foi ministro da Defesa, disse que é favor de uma solução de diálogo mediada por atores como o México.

Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, apontou à AFP riscos no alinhamento com Washington, porque o não reconhecimento do governo de Maduro “fecha os canais oficiais de diálogo”.

Mas admitiu que não ter reconhecido Guaidó “teria isolado o Brasil na região”.

– Intervenção militar? –

Os Estados Unidos informaram na quarta-feira que “todas as opções” serão analisadas se Maduro responder violentamente aos protestos da oposição.

Bolsonaro afirmou, em entrevista à TV Record, que “a história tem mostrado que ditaduras não passam o poder para a respectiva oposição de forma pacífica”, mas considerou que o Brasil “atingiu o limite do que se pode fazer para restaurar a democracia” na Venezuela.

Quando Guaidó declarou-se presidente, “em primeiro lugar, foram os Estados Unidos que reconheceram sua legitimidade, e logo depois outros países começaram a fazê-lo. O Brasil se inclui nesse grupo”, apontou Bolsonaro, que participa do Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça).

Hamilton Mourão, presidente em exercício na ausência de Bolsonaro, foi mais contundente: “O Brasil não participa de intervenção. Não é da nossa política externa intervir nos assuntos internos de outros países”.

Amorim descarta o envio pelos Estados Unidos de tropas a Caracas, mas considera que os níveis de perigo foram atingidos. “Estou muito preocupado, acredito que estão procurando situações de confronto”, afirmou.

Stuenkel acredita que uma ação militar na Venezuela pode ser uma tentação para setores do governo Bolsonaro, mas pensa que a posição de Mourão vai prevalecer, “porque é uma questão que envolve diretamente os militares”.

O acadêmico afirma que o Brasil é “um ator secundário” na crise, porque é a posição dos Estados Unidos “que estruturou o debate” em torno da Venezuela, uma potência petrolífera.

A situação venezuelana, acrescenta, é “um gigantesco limbo” com vários cenários possíveis, nos quais Guaidó parece “um substituto aceitável para facilitar a transição, mas não para permanecer no poder”.

O professor de Relações Internacionais Matias Spektor enfatiza que a aposta de Brasília não deve se limitar a Guaidó, que “está longe de representar uma liderança consolidada”.

Guaidó “não tem base ampla nem controla as ruas. Seu programa de governo é vago, utópico e não oferece credibilidade para construir a coalizão necessária em um esforço para restaurar a democracia”, disse Spektor em coluna publicada na Folha de S. Paulo.

– Refugiados –

Nos últimos três anos, mais de 150.000 venezuelanos entraram no Brasil fugindo da crise econômica e social.

Apenas o estado de Roraima, na região amazônica, recebeu 75.500 pedidos de regularização desde 2015.

Segundo Mourão, o Brasil está “preparado” para um aumento desse fluxo. Atualmente “400, 500 pessoas estão entrando por dia, houve dias em que 800 entraram”, disse ele.

Mourão também ressaltou que Roraima, que depende da eletricidade da Venezuela, poderia superar um corte na oferta com um “plano de contingência” baseado nas usinas termelétricas existentes.