Imerso em crises políticas, o Peru parece viver um conflito eterno. Agora, o país se vê novamente tomado por manifestantes nas ruas, com dezenas de mortos e centenas de feridos em confrontos diante da repressão policial violenta, apoiada pela presidente Dina Boluarte, que não completou nem dois meses de gestão. Mesmo que o Congresso aprovasse a proposta apresentada por ela, de antecipar eleições presidenciais de abril de 2024 para outubro deste ano, o sistema de governo segue favorecendo os constantes tremores institucionais. Como o Legislativo pode destituir o Executivo e o Executivo pode dissolver o Parlamento, a nação vive um moto-contínuo em que já rodaram seis presidentes em quatro anos. E a própria Dina Boluarte está com a cabeça a prêmio.

Eleições antecipadas não seriam a solução, diz André Leite Araujo, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Bolonha. “A Constituição vem da década de 1990 e a organização partidária é muito fragmentada, com legendas fracas e distantes da população. O modelo institucional, que deveria ser de equilíbrio entre Executivo e Legislativo, fica suscetível a instabilidades, vistas nessa série de presidentes que caem.” Sem mudanças, afirma o analista, a eleição de novos protagonistas não interromperia “as crises políticas continuadas, que se estendem à economia, aos direitos individuais e coletivos, ao bem-estar social e até ao turismo, que se vê afetado em meio a esse cenário”.

Desta vez, os conflitos vêm se agravando desde 7 de dezembro, data da tentativa de “autogolpe” de Pedro Castillo. Populista, professor e líder sindical eleito em 2021, ele é investigado por corrupção. Tentando se segurar no poder, somou mais de 60 trocas de secretários em um ano. Para escapar do quarto pedido de impeachment, Castillo foi à tevê dizer que dissolveria o Congresso e iria governar por decretos.

Crise sem fim no Peru: manifestantes exigem renúncia da presidente Dina Boluarte
REPRESSÃO Policiais em confronto com militantes em Lima, no dia 21, seis dias após o Estado de Emergência ter sido renovado (Crédito:Sebastian Castaneda)

A resposta dos parlamentares veio de imediato, com a destituição do presidente pela tentativa de golpe. Com Castillo preso, sua vice assumiu. Mas Dina Boluarte não conta com o apoio dos próprios eleitores do titular, que estão nas ruas exigindo sua renúncia. Ou a volta do presidente eleito, ou a renovação do Congresso com novas eleições, ou a convocação de uma Assembleia Constituinte que reformule o sistema de governo. Essas manifestações, que haviam começado em focos pelo interior do país, foram crescendo e se espalharam por várias cidades peruanas, até chegar à capital.

Efeito dominó

A vice foi empossada sob protestos e tem sido criticada pela composição de seu gabinete. De cara, nomeou Pedro Angulo Arana, inimigo de Castillo, para presidir o Conselho de Ministros, cargo que se assemelha ao de um primeiro-ministro. Investigado por assédio sexual, o promotor do Ministério Público falou que os manifestantes tinham morrido porque falavam quéchua e “não entendiam ordens policiais em espanhol”. Foi substituído por Alberto Otárola, então no Ministério da Defesa, que acusou os militantes de “ligação com narcotráfico e garimpo ilegal”. O ministério foi se corroendo: os titulares da Educação e da Cultura saíram em dezembro. Em janeiro, depois da agressão ao jornalista Aldair Mejía, mais os mortos e feridos, renunciaram outros três ministros.

Em 21 de dezembro, o Congresso havia aprovado proposta da presidente de antecipar eleições em dois anos, para abril de 2024. Mas depois da trégua de fim de ano, ruas e estradas foram tomadas por protestos e faltam alimentos, combustível, gás e medicamentos, principalmente nas áreas pobres do sul, onde vivem quéchuas e aimarás. O país acumula prejuízos em torno de US$ 1,3 bilhão (R$ 6,6 bilhões) e padece com o endurecimento da repressão autorizado pela presidente em 19 de janeiro, quando indígenas, camponeses, estudantes e sindicalistas iniciaram a “Tomada de Lima”. A governante estendeu o Estado de Emergência decretado em dezembro, restringindo direitos civis e fechando aeroportos, apoiada pelo ministro da Justiça, para quem o governo age em defesa da democracia.

No dia 26, após sete dias seguidos de protestos e com a sexta renúncia em seu gabinete (da ministra da Produção), Dina Boluarte enviou outra proposta ao Congresso, antecipando ainda mais as eleições, para outubro deste ano. Além do Executivo, também o Congresso seria renovado, com mandatos abreviados.

Crise sem fim no Peru: manifestantes exigem renúncia da presidente Dina Boluarte
VIRAVOLTA Dina Boluarte foi empossada em dezembro passado, após o presidente Pedro Castillo ser detido em seguida a um golpe e Estado frustrado. Ela já está com a cabeça a prêmio (Crédito:CRIS BOURONCLE/LUCAS AGUAYO ARAOS)

A iniciativa foi rechaçada.

Em 2021, Pedro Castilho se elegeu com 50,18% dos votos, contra 49,82% de Keiko Fujimori, da extrema-direita. Especialista em Relações Internacionais, André Araujo observa que os manifestantes, dos polarizados em esquerda e direita aos mais difusos, a favor da volta de Castillo ou descontentes com o cenário político-econômico, não têm foco em um projeto político específico, mas mostram insatisfação com a situação em geral, que tem raízes históricas e problemas agravados pela pandemia. No meio dessa fogueira, a presidente reafirma que não vai renunciar. A conferir.