Diante de imagens de 21 corpos descobertos por satélite em ruas e valas em Bucha, na Ucrânia, rapidamente divulgadas nas redes sociais, além de aproximadamente outros 400 em cidades no entorno da capital Kiev, o mundo reagiu com manifestações de indignação. O presidente francês Emmanuel Macron defendeu mais sanções contra a Rússia e disse que “há indícios muito claros de crimes de guerra”; o chanceler alemão Olaf Scholz apontou que “assassinatos de civis devem ser investigados de forma implacável” e o presidente americano Joe Biden pediu o julgamento de Vladimir Putin, presidente da Rússia, como criminoso de guerra Nem precisava. Uma investigação, com coleta de provas, já está aberta desde 1º de março, determinada pelo britânico Karim Khan, presidente do Tribunal Penal Internacional (TPI). Falando ao Conselho de Segurança da ONU nesta semana, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky exigiu a responsabilização de Putin. O embaixador da Rússia, Vassili Nebenzi, tentou contestar, condenando “a enorme quantidade de mentiras” ouvidas sobre as chacinas. Mas seu país não conseguiu efetivamente se defender nem provar nenhuma manipulação de informação, o que apenas aumentou a indignação internacional.

Ronaldo Schemidt

A população ucraniana sofre com a artilharia russa e bombardeios aéreos desde a invasão, em 24 de fevereiro, ou com “ataques indiscriminados”, como a Anistia Internacional descreve a situação. O registro dos corpos em valas remete a cenas chocantes de extermínio de judeus ordenado por Adolf Hitler e seu Estado nazista durante e Segunda Guerra, entre 1939 e 1945. Dos judeus na Europa, dois terços dos nove milhões foram mortos. O programa de extermínio étnico, político e social atingiu também poloneses, ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas e prisioneiros soviéticos, chegando ao total de 11 milhões. Esse horror motivou a criação de tribunais internacionais – e o mais famoso deles foi em Nuremberg – para julgar as atrocidades. Na ONU, em 1998 foi aprovado o Tratado de Roma para a criação do Tribunal Penal Internacional (permanente, com sede em Haia, na Holanda), assinado por 120 países (EUA, China, Israel, Iêmen, Iraque, Líbia e Catar não assinaram e 21 se abstiveram). O início oficial de atividades se deu apenas em julho de 2002.

GENOCÍDIO Depois da Segunda Guerra Mundial, o horror nazista foi revelado com toda sua crueza em campos de concentração como o de Bergen-Belsen (Crédito:Divulgação)

Contra Putin e seus soldados há acusações que se encaixam na lista dos chamados crimes de guerra. Iryna Venediktova, procuradora-geral da Ucrânia, afirmou que alguns dos 410 cadáveres de civis foram encontrados com as mãos atadas e tiros na nuca. Segundo Anatoly Fedoruk, prefeito de Bucha, em um mês de ocupação russa foram mortos 300 residentes da cidade, com ao menos 280 enterrados em valas comuns. Além do massacre de civis, teriam sido usadas bombas termobáricas em pelo menos uma cidade ucraniana, de acordo com Oksana Markarova, embaixadora da Ucrânia nos EUA. Proscritas pela Convenção de Genebra, essas bombas de vácuo, feitas quase exclusivamente de combustível, consomem o oxigênio à volta do local de explosão, provocando temperaturas extremas e danos internos em sobreviventes ao redor. Também houve notícias sobre armas químicas e biológicas, ainda não confirmadas. Denúncias de estupro, encampadas por várias organizações humanitárias, partiram de mulheres e meninas que se apresentaram depois da passagem de soldados russos.

Karim Khan, o promotor do TPI, disse que “existe uma base razoável para acreditar que supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade foram cometidos na Ucrânia desde 2014”, acrescentou, lembrando a data da ocupação da Crimeia. E observou que a investigação vai abranger “quaisquer novos supostos crimes que se enquadrem na jurisdição do meu escritório e que sejam cometidos por qualquer parte do conflito, em qualquer parte do território da Ucrânia”.

REPÚDIO Joe Biden, presidente dos EUA, quer mais sanções à Rússia (Crédito:Mandel Ngan)

Um tribunal para a história

O Tribunal Penal Internacional (TIP) julga pessoas e não Estados (daí o pedido do presidente Joe Biden, quanto a julgamento de Vladimir Putin). Abre-se um inquérito em busca de provas – e a rapidez é fundamental, para evitar que se percam. A investigação diferencia crimes de guerra (confronto interno ou entre Estados, que incluem homicídios intencionais, tortura, tomada de reféns), de crimes contra a humanidade e de genocídio (que podem ser em tempos de paz, com ataques unilaterais militares contra grupos desarmados). A questão da Ucrânia está sob dois âmbitos: crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Observa-se que “nem toda morte civil é necessariamente ilegal”, se a ação militar for justificada (mesmo ataques a cidades e bombardeios a residências e escolas). E na zona cinzenta estão, por exemplo, bombardeio a base militar que fornece energia a hospitais, e civis que agem como sabotadores e combatentes à paisana.