Se o Brasil colocar um policial em cada metro da fronteira de 17 mil quilômetros com os dez países com os quais faz divisas, a maioria cortadas por estradas de terra – e para isso precisaria ter milhares de policiais, ao invés dos 3.000 que dispõe atualmente -, os contrabandistas cavariam túneis e passariam seus produtos (cigarros, eletroeletrônicos, armas e drogas) para o território brasileiro sem serem incomodados.

“Deixamos a situação atingir esse ponto, mas chegou o momento das providências, não é possível mais aceitar.” Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria

Essa análise foi feita à ISTOÉ pelo contrabandista Fuad Jamil Georges, que na década de 80 era considerado o “rei da fronteira” em Ponta Porá (MS), divisa com Pedro Juan Caballero (Paraguai). Hoje, Fuad não está mais na ativa, depois de ter sido condenado em 2005 a 20 anos de prisão. Mas serve para ilustrar como funciona o contrabando e o tráfico na divisa brasileira com o Paraguai, separada por uma fronteira seca de 1.366 kms. Basta atravessar uma rua, estrada vicinal ou um caminho tomado pelo mato para se introduzir produtos paraguaios no território brasileiro, sem qualquer repressão. Mas há os contrabandistas que passam seus produtos sem serem molestados pela Ponte da Amizade, em Foz do Iguaçu, contando com a conivência e tradicional corrupção policial. Depois que os produtos paraguaios atravessam para o lado brasileiro, seguem em caminhões ou automóveis até os grandes centros consumidores (Rio e São Paulo), onde são comercializados livremente. Trata-se de uma dinâmica que traz ao País um prejuízo de R$ 6,4 bilhões só no setor de cigarros contrabandeados.

VIZINHO - Carregadores em porto clandestino de Ciudad del Este. Produção de cigarro do País é voltada ao mercado brasileiro
VIZINHO – Carregadores em porto clandestino de Ciudad del Este. Produção de cigarro do País é voltada ao mercado brasileiro

É apenas mais um dia nas ruas do comércio popular de São Paulo, onde lojistas vendem livremente os cigarros contrabandeados. Provenientes do Paraguai, podem ser encontrados por um valor médio de R$ 3,30 e lideram o ranking de consumo no estado. Seus concorrentes diretos, produtos legais, não conseguem fazer frente, pois por lei não podem ser comercializados a menos de R$ 5. O mais comum é que sejam ainda mais caros, custando em média R$ 7,42, em função da grande carga tributária. A quantidade de cigarros ofertados nas calçadas da cidade é somente a ponta final da história sobre como a indústria clandestina está prestes a superar o mercado oficial de tabaco. Desde 2011, a venda de cigarros legais despencou de 93 para 66 bilhões de unidades ao ano, redução de quase 30%. No mesmo período, os ilegais saltaram de 24 para 34 bilhões, aumento de mais de 40%. Se as mudanças continuarem neste ritmo, já em 2020 o negócio pirata será maior do que o oficial. Não é por acaso que a mercadoria hoje é o produto mais contrabandeado do País, representando 70% do que entra às escondidas pela fronteira paraguaia.

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O florescimento do mercado negro prejudica os cofres nacionais. Em prejuízos de vendas e evasão de impostos, estima-se que R$ 6,4 bilhões anuais sejam perdidos ao contrabando de cigarros. Para se ter uma ideia, as perdas da Petrobras com a operação Lava Jato foram de R$ 6,2 bilhões. A situação chegou a este nível devido à má fiscalização das fronteiras e o aumento de impostos, apontam especialistas consultados pela ISTOÉ. Atualmente, um maço de cigarro é onerado por 80% de impostos. Ou seja, um maço de cigarros que custe R$ 10,00, um total de R$ 8,00 vai para os cofres do governo e apenas R$ 2,00 para o fabricante. Como o produto paraguaio praticamente não tem impostos, seu preço fica imbatível se comparado ao brasileiro.

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O esquema que favorece o cigarro do País vizinho começa nas fábricas do Paraguai, principal manancial de tabaco pirata. O presidente do país, Horacio Cartes, é o maior acionista da Tabacaria Del Este (Tabesa), principal fabricante de cigarros da nação vizinha. Com população de pouco menos de 7 milhões de pessoas, o país fabrica 55 bilhões de unidades ao ano. Com quase 30 vezes mais gente, a produção brasileira é apenas um pouco maior, 63 bilhões. Presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), Luciano Barros diz que a maior parte desse excedente é contrabandeada com a conivência do mandatário paraguaio. “É claro que Cartes sabe o que está acontecendo”, afirma. “Mas vai deixando ir em frente porque o Brasil não reclama, somos negligentes”.

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As principais rotas

Das indústrias do Paraguai, o cigarro é despachado para as fronteiras brasileiras, em especial no Paraná e Mato Grosso do Sul. O número de policiais nas fronteiras é baixo comparado com o de outros países, 3 mil servidores. Estados Unidos, Alemanha e China, por exemplo, possuem 20, 40 e 50 mil funcionários, respectivamente. As principais rotas atravessam as BRs 163 e 277 (veja quadro) por onde se avalia que passe 100% do contrabando vindo do Paraguai. Rumo ao Sudeste, o mercado mais importante, os produtos ficam em depósitos que armazenam e distribuem a pirataria pelo caminho.

O modus operandi envolve subornos de entes públicos em todos os pontos do percurso. Policiais batedores, que ativamente escoltam a mercadoria, evitando incômodos em sua jurisdição, recebem R$ 1 mil por missão. Nos postos de fiscalização propriamente ditos, o pagamento vai de R$ 3 a 10 mil caso haja acordos pré-estabelecidos. Caso contrário, o criminoso pode oferecer, no momento do flagrante, até R$ 50 mil para se livrar. Num evento realizado em julho, o delegado da Polícia Federal Rodrigo Costa disse ser impossível haver contrabando sem corrupção. “Encontramos com criminosos anotações como posto X 5 mil, posto Y 10 mil, delegacia em São Paulo 50 mil.”

O cenário é propício para o fortalecimento do crime organizado, incluindo facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Em cidades fronteiriças, onde a economia depende do contrabando, o índice de assassinatos supera em muito a média nacional. No pior caso, o de Coronel Sapucaia (MS), são 112 homicídios a cada 100 mil habitantes. No Brasil, o índice está em 29. Em São Paulo, 16. Em outro sintoma da violência relacionada, mais de 70% dos veículos roubados apreendidos entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2015 levavam cargas de tabaco contrabandeado. “Deixamos a situação chegar a esse ponto”, afirma o presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria (FNCP), Edson Vismona. “Mas chegou o momento das providências, não é possível mais aceitar.”

DOMÍNIO - Pacotes ilícitos são apreendidos. Marca paraguaia é líder de vendas no Brasil
DOMÍNIO – Pacotes ilícitos são apreendidos. Marca paraguaia é líder de vendas no Brasil

Para piorar, um estudo recente conduzido com cigarros apreendidos pelo químico Cleber Pinto da Silva, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), concluiu que eles apresentam concentrações elevadas de elementos tóxicos, com nível de metais cancerígenos até 11 vezes superior aos verificado em legalizados. Além disso, 80% das marcas possuíam vestígios de pelos de ratos, colônias de ácaros e patas de baratas em quantidades superiores ao permitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “O consumo deste tipo de cigarro pode potencializar os riscos a saúde de quem os consome”, escreve o pesquisador.

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Drogas e armas

De acordo com os especialistas consultados pela reportagem, as causas são a fraca segurança das fronteiras e o aumento de impostos. Pesquisa Datafolha mostra que a população concorda com a avaliação. Cerca de 80% dos brasileiros apontam o governo como responsável pelo aumento do contrabando, sendo que para mais da metade há “muita” responsabilidade. A vasta maioria concorda ainda que aumento de impostos estimula a compra de mercadoria pirata e que o problema põe em risco empregos no Brasil. Procurados, o presidente do Paraguai e os ministérios da Justiça e das Relações Exteriores não responderam a ISTOÉ.

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Quanto às fronteiras, sua precariedade permite a entrada não só de tabaco, mas de drogas ilícitas e armas no País. No ano passado, o ministro do Tribunal de Contas da União Augusto Nardes pintou um quadro catastrófico do cenário. “O baixo grau de investimentos e a carência de recursos humanos, materiais e financeiros realçam a vulnerabilidade daquele espaço, caracterizando verdadeira omissão do poder público”, escreveu em parecer.


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