Tenho muito orgulho de certas conquistas pessoais, principalmente as de ordem evolutiva. Sim, me honram os feitos profissionais e materiais, advindos de muito trabalho e esforço honesto. Porém, intimamente, segundos antes de dormir, o que me comove e fornece paz de espírito, para o “sono dos justos”, é saber quem eu sou – ou o que eu sou.

Na casa dos 50, pertenço a uma geração de transição. Meus pais me criaram a partir de conceitos e valores transmitidos por meus avós, claro, mas conviveram com mudanças dramáticas de cunho social, econômico e político. A guerra-fria, a revolução sexual, a contracultura, a solidificação do capitalismo, enfim, cresceram sob constante revolução.

LÁ VEM O BOLSONARISMO

Ouvi e aceitei como “verdade”, durante boa parte da minha infância e adolescência, o infame jargão: “prefiro uma filha puta a um filho viado”. Meu Deus! Custo a acreditar que pessoas tão boas, como meus pais, me diziam algo assim. Não à toa, eu considerar Jair Bolsonaro, o ex-verdugo do Planalto, um verdadeiro monte de excrementos:

“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim, ele vai ter morrido mesmo”. Eis uma das declarações do devoto da cloroquina, cristão, vejam só, a respeito de homossexuais. E não. Isso não é aceitável sob qualquer pretexto.

SIM, ELES EXISTEM. PONTO

Na parada LGBT+, ocorrida neste domingo (11/6), em São Paulo, cerca de 120 famílias levaram suas crianças e jovens, empunhando cartazes, a fim de chamar a atenção da sociedade para uma realidade, gostem ou não os trogloditas e reacionários de todas as espécies, inclusive as religiosas e políticas: há meninos e meninas transexuais. Ponto.

Pais e seus filhos (de 3 a 18 anos) desfilaram, muito mais que unidos e orgulhosos de si mesmos, dispostos a mostrar que “problemas” existem. Sim, “problemas”, entre aspas. Porque se não é um “problema” de fato, é um “problema” cotidiano ter de lidar com as dificuldades próprias de uma sociedade retrógrada e preconceituosa como a brasileira.

EXTREMISTAS RETRÓGRADOS

Movimentos de direita e extrema direita, cada vez mais indissociáveis, infelizmente, demonizaram as fotos que circularam por todos os sites do País. Essa gente não admite nem sequer a possibilidade de pais aceitarem, amarem, cuidarem e protegerem seus filhos trans. Como diria seu guru ideológico, preferem que morram.

Alguém tem de avisar a este pessoal que, sim, existem crianças e jovens trans, e existem, graças ao amor e a Deus (aquele da Bíblia, que aceita seus filhos como são, sem ódio, e não aos deuses de araque, sedentos por dinheiro dos fiéis), pais e mães afetuosos, muito mais preocupados com o bem-estar dos filhos que com lacração de “cidadãos de bem”.

SOU QUEM SOU; LONGE DA PERFEIÇÃO

Comecei esse texto falando de mim, e a mim eu retorno. Houve um tempo, lá atrás, antes da paternidade e a maturidade me chegarem, que eu também pensava, senão como meus pais, mas de forma preconceituosa e discriminatória. E não. Não sou, ou estou, imune a pensamentos ainda atrelados ao modelo binário de gênero. Infelizmente.

Eu ainda “escorrego” em certas falas e pensamentos, mesmo que meus sentimentos digam o contrário – ainda bem! Sou adepto da “eterna vigilância”, e por isso me policio o tempo todo. Por quê? Porque quero deitar e dormir bem. Dormir ciente de que abracei e ajudei a quem precisa, e não o contrário, ofendi e apunhalei quem nada me fez de mau.

À LUTA, AQUELES DE BOA VONTADE

Fechar os olhos para uma questão tão sensível, grave e desumana – que crianças e pais sofrem por causa de preconceito de gênero -, não é diferente de não se importar com o racismo, com a fome ou com a extrema desigualdade social do Brasil. É ser, ou tornar-se, alguém pior, e isso, ao menos para mim, é inaceitável. Daí meu combate ferrenho.

Pais, crianças e jovens trans – e adultos e idosos na mesma condição – sigam firmes e adiante na busca por igualdade e direitos. Vocês não são nem melhores nem piores, aos olhos da Constituição, que quaisquer desses trogloditas que os perseguem nas redes sociais. E dentro da minha modesta contribuição, contem comigo.

DESENHANDO PARA AS BESTAS

Popularmente falando, para encerrar, recorro àquela anedota em que o “corno” manda retirar da sala o sofá em que a esposa lhe trai. A comparação esdrúxula é proposital; uma maneira de tentar alcançar a (in)capacidade intelectual dos selvagens. Atenção: esconder crianças e jovens trans não protegerá seus filhos de serem, ou se tornarem, quem são.

Assim, preocupem-se em educar e amar suas crianças, independentemente do que o “mundo exterior” lhes apresente diariamente. Ninguém irá se transformar, naquilo que não é, porque viu ou ouviu falar na escola. Gênero é uma característica individual de cada um. Simples assim. E jamais será “defeito” não ser heterossexual. Entenderam ou preciso desenhar?