Desde os primeiros dias de fevereiro, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) anda insone. O parlamentar vem tentando emplacar sem sucesso a CPI da Lava Toga – destinada a investigar os magistrados dos Tribunais Superiores e passar a limpo o Poder Judiciário, como já havia sido feito com o Executivo e o Legislativo, onde a Lava Jato levou à prisão ex-presidentes da República, ex-governadores, ministros, deputados, senadores e ex-presidentes da Câmara. O objetivo da Lava Toga é responsabilizar juízes togados, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF), suspeitos de crimes e irregularidades que poderiam levá-los até ao afastamento de seus nababescos cargos. O Senado é o único órgão que pode pedir o impeachment de integrantes do Supremo. Apesar de contar, em vários momentos, com o número mínimo de 27 assinaturas de senadores para a abertura do inquérito, a Lava Toga não prospera. Sobretudo por causa da pressão dos ministros do STF e, especialmente, de manobras com as bênçãos do governo sobre os senadores, no sentido de pressioná-los a retirarem as assinaturas que garantiriam a instalação da Comissão de Investigação. O condutor dessas coações tem nome e sobrenome: o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente e ponta-de-lança de um jogo rasteiro cujo único propósito é o de inviabilizar a CPI (leia reportagem nas páginas 28 e 29). Em troca da suspensão das investigações sobre eventuais crimes que ele cometeu quando era deputado estadual no Rio de Janeiro, determinada pelo presidente do STF, Dias Toffoli, Flávio adotou a política de uma mão lava a outra e, de forma escancarada, passou a trabalhar para enterrar a Comissão antes mesmo dela nascer. Como se semideuses e inatingíveis juridicamente fossem, os ministros de toga dizem que se a investigação for aprovada no Senado, eles irão travar no STF. Mas, afinal, o que tanto eles temem?

Os atos irregulares de ministros do STF são elencados pelo senador Vieira nos dois pedidos de CPI que ele protocolou no Senado – o terceiro acontecerá no próximo dia 25. Nos documentos, o parlamentar sergipano relaciona decisões contraditórias de ministros como Marco Aurélio Mello, Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Para o senador, eles cometeram “disfunções estruturais do sistema judicial brasileiro, violando os princípios da isonomia, da legalidade e o respeito ao devido processo legal”. Acusações mais pesadas recaem sobre os ministros Dias Toffoli, presidente do STF, e Gilmar Mendes, ex-presidente da corte. “A maioria dos magistrados é composta por pessoas corretas, mas existem situações que precisam ser apuradas. Ninguém é contra o Poder Judiciário. Tentamos colaborar para que pessoas que cometem atos irregulares sejam expurgadas dentro do processo legal”.

De acordo com os requerimentos que pedem a abertura da CPI da Lava Toga – assinados por senadores de todos os partidos, incluindo três dos quatro parlamentares do PSL (Major Olimpio, juíza Selma Arruda e Soraya Thronicke), com exceção, claro, de Flávio Bolsonaro -, os dois ministros da Suprema Corte deveriam ser investigados por suas “condutas ímprobas, desvios operacionais e violações éticas”. Contra Gilmar Mendes pairam as suspeitas de que ele usaria o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual seria sócio, para enriquecer. Segundo o documento protocolado pelo senador Alessandro Vieira, de 2011 a 2017, o IDP teria recebido empréstimos no valor de R$ 36,4 milhões de um dos maiores bancos privados do País. Nesse período, Gilmar teria julgado pelo menos 120 casos envolvendo a instituição bancária, que é um dos maiores litigantes de causas trabalhistas no Brasil. O ministro, segundo a CPI, deveria se declarar incompetente para julgar as ações. Em contrapartida, o banco renunciou a taxas de juros no valor de R$ 2,2 milhões que teriam favorecido o IDP. Gilmar é relator também de dois dos cinco recursos que estão no STF desde a década de 1990 em que outras instituições financeiras são acionados por poupadores de poupança que exigem na Justiça o ressarcimento por perdas dos planos econômicos das décadas de 80 e 90, cujas quantias envolvem recursos de R$ 20 bilhões.

IDP: a pedra no sapato

O IDP é um velho conhecido calcanhar-de-aquiles do ministro e ex-advogado-geral da União de FHC. Não por acaso, suas operações vem à baila toda vez que Gilmar Mendes é mencionado em atividades aparentemente nada republicanas – embora ainda não comprovadas. O próprio ministro não se constrange em refutá-las, seja em entrevistas ou mesmo quando abordado publicamente. O magistrado insiste que nada que envolva o IDP é capaz de desaboná-lo. Recentemente, surgiu a informação de que o instituto havia recebido R$ 7,5 milhões da JBS, dos irmãos Batista, envolvidos no pagamento de propinas a políticos, no período de 2008 a 2016. Outra transação mal explicada, desta vez sem relacionar o Instituto Brasiliense de Direito Público, foi o negócio que a irmã do ministro Maria da Conceição Mendes França celebrou em 2013 com o governador do Mato Grosso, Silval Barbosa (MDB), preso por corrupção – prisão esta que levou o ministro a solidarizar-se com ele em ligação telefônica. Na ocasião, a irmã de Gilmar Mendes vendeu para o governo do Mato Grosso uma faculdade, a União de Ensino Superior de Diamantino (Uned), por R$ 7,7 milhões. O MPF viu irregularidades no negócio, incluindo superfaturamento. O ministro nega.

“Se essa CPI for instalada, o próprio Supremo mandaria trancá-la” Gilmar Mendes, ministro do STF

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No início do ano, Gilmar Mendes chegou a ter suas declarações de bens reviradas, sem autorização judicial, por dois técnicos da Receita do Espírito Santo, demitidos a pedido do ministro Alexandre de Moraes, após pressão do STF sobre o governo Bolsonaro. “Os funcionários da Receita agiram como pistoleiros”, esbravejou o magistrado em fevereiro. Havia motivos para a fúria. Os funcionários da Receita encontraram valores incompatíveis nas contas do ministro e da sua mulher, a advogada Guiomar Mendes, sócia do maior escritório de advocacia do País, pertencente ao jurista Sérgio Bermudes.

As atitudes recentes do ministro indicam receio do que pode emergir a partir da criação da CPI. Reza o bordão político que todos sabem como uma Comissão de Inquérito Parlamentar começa, mas ninguém sabe como termina. Em entrevista no domingo 15, Gilmar demonstrou não querer pagar para ver. Afirmou que a CPI da Lava Toga é “inconstitucional” e que seria derrubada no STF. “Se essa CPI for instalada, ela não produzirá nenhum resultado. Certamente o próprio Supremo mandaria trancá-la”. Antes disso, porém, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), precisaria avalizar a abertura da CPI, o que não aconteceu nas duas primeiras iniciativas dos senadores. Como ele parece jogar no time de Bolsonaro e Dias Toffoli que costura um “acordão” contra a Lava Toga, segundo denuncia Alessandro Vieira, é provável que os senadores recorram à Justiça. Nesse caso, cairão no colo do STF, onde, certamente, a Comissão terá chances menores de prosperar. É o famoso “está tudo dominado”. A não ser que a medida vá para plenário, onde o placar nem sempre é facilmente identificado antes de a bola rolar.

Dias Toffoli, certamente, tentará apitar o jogo antes mesmo de ele começar. Explica-se: a Lava Toga quer saber o que há de tão extraordinário nas contas bancárias do ministro e da sua mulher, a advogada Roberta Rangel, que também levaram funcionários da Receita Federal a devassá-las. Segundo levantamento feito pela revista Crusoé, Toffoli recebia mesada de R$ 100 mil de Roberta desde 2015, totalizando R$ 4,5 milhões. A movimentação com indícios de lavagem de dinheiro foi comunicada ao Coaf. Problemas com bancos turvam o perfil de Toffoli há tempos. Em 2011, segundo o senador Vieira, o presidente do STF obteve um empréstimo bancário de R$ 931,1 mil, mas o ministro continuou a julgar as causas que envolviam a mesma instituição financeira. Em 2013, o estabelecimento bancário renegociou a dívida do magistrado, que sofreu uma redução de 17,72% nas prestações mensais, bem diferente do que acontece com os simples e mortais clientes, que sofrem com extorsivas taxas anuais de mais de 400%.

O caso mais escabroso envolvendo o ministro, contudo, apareceu na delação premiada do ex-presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht. Ele inseriu Toffoli no mar de lama do departamento de propinas da empreiteira, que subornou um número infindável de autoridades no governo petista. É preciso sempre ter em mente que, antes de se tornar ministro, Toffoli foi advogado das campanhas eleitorais de Lula, assessor do ex-ministro José Dirceu, e advogado-geral da União em 2007, ano em que foi envolvido em supostas maracutaias da Odebrecht. Em um e-mail disparado por Marcelo Odebrecht ao diretor jurídico da empreiteira Adriano Maia, no dia 13 de julho de 2007, para saber como estavam as negociações para a liberação das obras da empreiteira na Usina Santo Antônio, no Pará, o presidente da companhia pergunta: “Afinal, vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?” Maia responde: “Em curso”. O amigo do amigo do meu pai, segundo Marcelo, era o então chefe da Advocacia Geral da União (AGU), Dias Toffoli, o atual presidente do STF. Nas obras da usina, a Odebrecht investiu R$ 100 milhões em propinas, Marcelo, que não acusa Toffoli de corrupção, esclareceu na delação apenas que “o amigo do meu pai era Lula. E o amigo do amigo do meu pai era Dias Toffoli”.

Censura

Quando a Crusoé publicou o e-mail, Toffoli ameaçou censurar a revista e o site O Antagonista, abrindo, porém, um inquérito por “fake news” para apurar supostos crimes contra os juízes do STF. Um escândalo, que virou capa de ISTOÉ. Afinal, quem deve abrir inquérito é o MPF, já que o STF julga os processos. Nesse caso, o STF ficou com a missão de investigar, julgar e condenar. Uma medida inconstitucional, mas Toffoli deixou o abacaxi para o ministro Alexandre de Moraes descascar. Uma trapalhada jurídica atrás da outra. Em recente entrevista, o presidente do STF tentou justificar ao dizer que no inquérito aberto no Supremo ele obteve “gravíssimas” informações na deep web sobre as ameaças aos ministros do STF. Ele informou que o assunto será encaminhado ao Ministério Público.

Os desmandos não se restringem ao STF. Os demais tribunais também são pródigos em promover aberrações jurídicas que provocam estranheza aos que desejam um Poder Judiciário livre de malfeitos. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é outra corte submersa em suspeitas de atos irregulares que a Lava Toga quer desvendar. O ex-ministro Cesar Asfor Rocha teria recebido propinas no valor de R$ 5 milhões da Camargo Corrêa para arquivar a Operação Castelo de Areia, de 2009, na qual a construtora era acusada de pagar propinas para políticos que beneficiavam a empresa em obras públicas superfaturadas. A denúncia do pagamento do suborno foi apresentada pelo ex-ministro de Lula, Antônio Palocci, que fez delação premiada para se livrar da cadeia recentemente. De acordo com a delação, ele mesmo foi beneficiado com propinas no valor de R$ 1,5 milhão. Ou seja, falou com conhecimento de causa. Nesse caso, o PT ganhou R$ 50 milhões da Camargo Corrêa para campanhas eleitorais, incluindo a da primeira eleição de Dilma Rousseff em 2010.

Um dos maiores argumentos contrários à Lava Toga é o de que a investigação não faria bem ao Brasil no momento em que se tenta soerguer a economia. Há quem diga também que trata-se de uma tentativa de emparedar o Supremo de modo a constranger ou impedir o exercício pleno do seu papel “contramajoritário” que lhe foi conferido pela Constituição Federal. Mas a pergunta que deve ser feita é: é justificável existir um Poder intocado na nossa República? Os integrantes do Judiciário não deveriam constituir uma casta de cidadãos imune a críticas ou ao sistema de freios e contrapesos. Quando cometem equívocos, deslizes ou desvios precisam sim ser submetidos aos mesmos procedimentos adotados a todos os brasileiros. Assim, romper a última fronteira do setor público que resiste ao escrutínio público, ao qual as investigações sobre malfeitos, como a corrupção, jamais e em tempo algum alcançaram, é sim mais do que necessário. Blindar a toga significa obnubilar os destinos do País.

Na trilha de Lalau

O ex-juiz Nicolau dos Santos Neto é um exemplo vivo do que uma investigação pode fazer para a limpeza na Justiça. Conhecido como Lalau, ele foi alvo da CPI do Judiciário de 1998, quando os senadores descobriram que ele desviou R$ 169,5 milhões da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. Acabou condenado a 26 anos de cadeia e hoje cumpre prisão domiciliar.


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