Couro de animais criados em áreas desmatadas e em terra indígena no Pará viram itens de luxo fabricados na Itália, aponta investigação da Earthsight.O couro bovino vindo de áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia pode estar se transformando em bolsas luxuosas – e inacessíveis para a maioria dos brasileiros. Marcas como Coach, Fendi e Hugo Boss são listadas como compradoras da matéria-prima proveniente de florestas destruídas no Pará, estado que recebe a próxima Conferência da ONU sobre o Clima, a COP 30, em novembro.
A denúncia está no relatório O preço oculto do luxo: o que as bolsas de grife da Europa estão custando à Floresta Amazônica, da ONG inglesa Earthsight. Divulgado nesta terça-feira (24/06), o trabalho analisou milhares de registros de remessas para o exterior do couro brasileiro, dados sobre o setor pecuário, decisões judiciais, imagens de satélite, além de realizar entrevistas e trabalho investigativo de campo.
Antes de serem desejadas por consumidores globais e adquiridas por centenas de dólares, bolsas de marcas famosas percorrem um longo trajeto, com diversas paradas que ocultam a sua origem. Muitos desses artigos de luxo, alerta a ONG, são feitos com o couro do animal criado em fazendas embargadas por violações ambientais e que ocuparam clandestinamente a Terra Indígena (TI) Apyterewa, no Pará.
"Os consumidores provavelmente esperam que, ao comprar um produto de luxo, aquele preço elevado ofereça algum nível de garantia quanto à ética e à sustentabilidade. Eles não esperam que aquela bolsa de couro esteja possivelmente ligada ao desmatamento e à violação de direitos", afirma à DW Lara Shirra White, pesquisadora da Earthsight.
Couro do gado "esquentado"
A desconfiança dos pesquisadores surgiu após investigações sobre ilegalidades na pecuária feitas pelo Ministério Público Federal (MPF) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). No fim de 2023, promotores começaram a ajuizar ações para punir os responsáveis pela comercialização de aproximadamente 50 mil cabeças de gado criadas ilegalmente na TI Apyterewa entre 2012 e 2022.
O território indígena, localizado em São Félix do Xingu, foi um dos mais invadidos e desmatados durante o governo de Jair Bolsonaro, que ficou no cargo até dezembro de 2022. A partir de 2024, operações federais começaram a expulsar os grileiros e retirar os bois criados nos pastos que antes eram Floresta Amazônica.
A fim de descobrir o destino do couro extraído do rebanho ilegal, a ONG investigou os negócios da Frigol, frigorífico apontado como um dos compradores do gado criado na TI Apyterewa. "A Earthsight analisou dados sobre os pecuaristas alvo das ações judiciais e descobriu que, entre 2020 e 2023, mais de 40% deles forneceram gado para unidades da Frigol no Pará", diz o relatório. "Esses pecuaristas venderam mais de 17 mil cabeças de gado para a Frigol durante esse período – o suficiente para produzir 425 toneladas de couro", afirma o documento.
Não é possível precisar o número de bois saídos ilegalmente da Apyterewa e vendidos a Frigol, ressaltam os pesquisadores. "O próprio frigorífico também não tem certeza. Isso mostra um problema mais amplo de falta de transparência no setor pecuário brasileiro, a empresa não rastreia a maior parte de seus fornecedores indiretos, o que deixa sua cadeia de suprimentos vulnerável à prática disseminada da ‘lavagem de gado'", diz o relatório, referindo-se à transferência de bois de fazendas ilegais para propriedades regularizadas na última etapa antes da venda.
Fundada em 1992 no interior de São Paulo, Frigol está entre os cinco maiores frigoríficos do Brasil. A empresa atua no Pará desde 2004, onde mantém unidades em Água Azul do Norte e São Félix do Xingu.
Couro brasileiro, fama italiana
Depois de abatido nas unidades da Frigol, parte do couro segue para fora do país. A maior exportadora do Pará é a Durlicouros, fundada em 1960 no Rio Grande do Sul e ativa em cidades paraenses também desde 2004.
A investigação mostra que, entre 2020 e 2023, a empresa exportou mais de 14.700 toneladas de couro para a Itália. Depois de chegarem em solo europeu, 25% dessa matéria-prima abasteceram os curtumes Conceria Cristina e Faeda – dois grandes fabricantes de itens que recebem etiquetas de marcas de luxo.
Entre as clientes da Conceria Cristina estão nomes como Coach, selo de bolsas que chegam a custar quase R$ 5 mil no mercado brasileiro. Fendi, Chloé, Hugo Boss e Saint Laurent também são abastecidas pelo curtume. Já a Faeda é fornecedora de marcas como Chanel, Balenciaga e Gucci, aponta a investigação.
Dono do maior rebanho bovino do mundo, com maioria criado em pastos na Amazônia, o Brasil também é um dos líderes globais na exportação de couro bruto. China, Estados Unidos e Itália são os principais destinos da matéria-prima, mostram dados do Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB).
Já os italianos estão no topo da produção mundial de vestuário de couro acabado e vendem seus itens principalmente para Estados Unidos, França, China, Alemanha e Reino Unido.
Para os pesquisadores que trabalharam no relatório, é difícil dizer se os curtumes europeus estão cientes sobre o rastro de desmatamento e violação de direitos indígenas que o couro saído da Amazônia deixa no país.
"Há muita opacidade nas cadeias de fornecimento de gado no Brasil. E os curtumes utilizam uma certificação chamada Leather Working Group para, de certa forma, atestar sua ética e a sustentabilidade do couro que produzem. Mas essa certificação não exige rastreabilidade até as fazendas", comenta White.
Falhas no sistema de certificação
Como em relatórios passados, a investigação da Earthsight levanta dúvidas sobre o papel de certificadoras. No caso do couro, os padrões de sustentabilidade são garantidos pelo Leather Working Group (LWG), fundado em 2005 com participação de marcas, fabricantes e fornecedores.
Dos nomes citados no relatório atual, a brasileira Durlicouros e os curtumes italianos Canceria Cristina e Faeda têm a certificação. O problema, apontam os pesquisadores, é que, ao não exigir a rastreabilidade até as fazendas de origem, o selo desconsidera os abusos ambientais e de direitos humanos no território de onde o gado vem.
"O risco que observamos com sistemas de certificação é que eles são utilizados por empresas que querem ‘limpar' sua cadeia de fornecimento como um atalho, em vez de realizarem uma diligência significativa por conta própria para garantir que suas cadeias estejam livres de desmatamento", argumenta White.
O que dizem as empresas brasileiras citadas
Questionado pela DW, o Frigol respondeu por meio de nota. A empresa afirma não comprar gado vindo de terras indígenas e que monitora 100% dos fornecedores indiretos nível 1, ou seja, aqueles que vendem para os fornecedores diretos do frigorífico. "Estamos comprometidos em atuar em conjunto com as instituições do setor, com a cadeia produtiva e com o poder público para avançarmos. Acreditamos que, no país que tem o maior rebanho do mundo, apenas rastreabilidade individual dos animais para fins socioambientais possibilitará mitigar o desmatamento em todos os elos da cadeia pecuária", diz a nota.
A Durlicouros afirmou por meio de nota que rastreia seus fornecedores indiretos e que discute modelos estaduais e nacionais de rastreabilidade total/compliance. "Além disso, todas as unidades da Durlicouros possuem certificação do Leather Working Group assegurando padrões elevados de sustentabilidade, rastreabilidade e responsabilidade ambiental, de acordo com a finalidade de cada uma das unidades", diz.
O que dizem as marcas
A Tapestry, proprietária da marca Coach, afirmou à DW que menos de 10% do total de couro utilizado nos produtos vêm do Brasil. "Reconhecemos que o sistema de rastreamento de matérias-primas no Brasil é complexo e imperfeito; no entanto, a Tapestry está empenhada em fazer parte da solução para melhorar a rastreabilidade e a transparência por meio de nossos programas com o WWF e outras organizações", diz.
O Kering Group, detentor das marcas Balenciaga, Gucci e Saint Laurent, reconheceu as duas empresas italianas citadas no relatório como fornecedoras, mas negou as alegações feitas pela Earthsight. À DW, o grupo afirmou que "conforme acordos contratuais, o couro fornecido por elas a qualquer marca do Kering Group não é originário do Brasil", diz a nota, reforçando que as marcas usam matéria-prima de outras regiões preferenciais.
Com base nos resultados da investigação apresentados pela Earthsight, a Hugo Boss disse à DW ter feito uma análise detalhada, examinado todos os dados disponíveis e consultado as fornecedoras Faeda e Conceria Cristina. "Com base nessa análise, podemos confirmar que nenhum dos couros fornecidos à Hugo Boss está relacionado a qualquer uma das partes mencionadas na investigação", afirma a nota.
O Leather Working Group reconhece que seu sistema avalia a conformidade ambiental e o desempenho dentro das instalações de fabricação de couro apenas, deixando de fora a rastreabilidade e origem até as fazendas. "Estamos atualmente aprimorando nossos requisitos de devida diligência relacionados ao desmatamento e à conversão de uso da terra. Esse trabalho incluirá o estabelecimento de um sistema de cadeia de custódia que possibilite uma rastreabilidade mais detalhada ao longo da cadeia de valor do couro", diz a nota.
Fendi, Chloe e Chanel não responderam até o fechamento desta reportagem. À Earthsight, a Chloe foi a única a detalhar seus métodos próprios de rastreamento do couro fornecido pelos curtumes citados. As empresas italianas Conceria Cristina e Faeda também não responderam.
Brasil e a lei europeia antidesmatamento
A indústria da pecuária continua contribuindo com o desmatamento, afirma Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). "Houve progressos parciais, mas o controle dos fornecedores indiretos é inexistente ou incompleto. Assim, gados criados em áreas desmatadas ilegalmente acabam entrando no mercado como se fossem legais. A falta de sistema público transparente sobre a origem do gado dificulta o controle", comenta.
Prevista para entrar em vigor no fim do ano, após 12 meses de adiamento, a lei antidesmatamento da União Europeia (UE) veta a compra de produtos vindos de áreas de florestas destruídas. A regulamentação, aponta a Earthsight, tem sérios opositores. "Esperamos que a lei seja implementada no prazo esperado, apesar de alguns setores específicos da indústria ainda tentarem, de certa forma, remover o couro do escopo da legislação", diz à DW Rafael Pieroni, pesquisador da ONG.
A mensagem do relatório também é para o governo brasileiro. "Ele deveria implementar a rastreabilidade e tornar todos os dados públicos, como as Guias de Trânsito Animal. A transparência é a melhor forma de evitar todas as ilegalidades que estamos expondo na nossa investigação", complementa.
Para a indústria do couro avançar, sugere Barreto, o controle teria que se assemelhar ao da carne: documentar a origem do gado conectado com informação ambiental das fazendas. "Uma peculiaridade é que parte do uso envolve produtos de alto valor – especialmente por causa de marcas famosas. Estas poderiam ter um papel mais potente de induzir as mudanças considerando valor e reputação das empresas", sugere.