De um lado, o Oceano Atlântico. De outro, o maior rio de água doce do mundo. No meio, ilhas que bailam. Na foz do rio Amazonas, no extremo norte do Brasil, um fenômeno considerado natural até alguns anos atrás passou a desafiar diariamente a comunidade científica, autoridades e moradores do Arquipélago do Bailique. O duelo entre o rio e o mar, antes sazonal, tem se agravado com o aquecimento global. O mar avança e derruba o que encontra pela frente. A água, antes doce, agora é salobra por períodos cada vez mais longos, impactando a vida de 13 mil habitantes das oito ilhas.

“É preciso lembrar que nós estamos na foz do maior rio do mundo, com uma dinâmica intensa de frente com o oceano. São dois titãs, e quem estiver nesse espaço aqui estará sujeito a essa dinâmica extrema”, resume a geóloga Valdenira Ferreira dos Santos, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA). Ela diz que há dois fenômenos atingindo o arquipélago, a erosão (erroneamente chamada de terras caídas) e a intrusão salina, e não há como saber precisamente as relações entre ambos.

Sem dados históricos confiáveis de monitoramento do avanço do mar, Valdenira criou o Observatório Popular do Mar, uma iniciativa com participação comunitária para reunir informações a fim de entender o que está acontecendo e compreender como o que ocorre no Bailique se relaciona com as mudanças climáticas. “Hoje, podemos dizer que (essa relação) é uma possibilidade, mas se você me perguntar qual a evidência científica efetivamente concreta de medições, isso não existe. O que existe são observações”, afirma a geóloga.

Essas observações são dos próprios moradores das ilhas, que têm reportado que a água do rio está ficando salgada cada vez mais para dentro do continente e cada vez mais cedo. O período de estiagem no chamado inverno amazônico vai, historicamente, de setembro a novembro. “Em algum momento (desse período), a água sempre ficava salobra. Esse processo sempre aconteceu, mas as informações que obtivemos em entrevistas sistematizadas com as comunidades indicam que esse processo parece estar avançando para dentro do continente”, diz a pesquisadora do IEPA.

Bruce Andrade, 43, é dono de um comércio na Vila Progresso, principal comunidade do Bailique, e sabe exatamente do que a pesquisadora está falando. Construída em abril de 2019, a Casa Andrade viu a erosão engolir 50 metros de margem e chegar rapidamente à sua porta. Em breve, o comércio terá de mudar para uma nova instalação construída atrás da atual. “Duraria mais 15 anos aqui só dando reparo, mas eu vou gastar mais 200 mil reais para poder construir lá atrás. E não tem ajuda de ninguém”, reclama o comerciante.

Ele nasceu e cresceu na ilha, migrou para Macapá e retornou em 2018. “Me criei aqui sem problema nenhum com água, e quando voltei eu nem sabia que a água estava salobra.”

Evolução histórica

As imagens de satélite da região do Bailique comprovam que, ao longo de 33 anos, a dinâmica hidrológica na costa do Amapá se alterou significativamente. Entre 1990 e 2023, como mostra o vídeo abaixo produzido pelo IEPA, houve um assoreamento na foz do rio Araguari, que passou a desaguar no rio Amazonas por meio de dois canais que surgem exatamente em frente ao Bailique.

Para o engenheiro Alan Cavalcanti da Cunha, professor da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e pós-doutor em fluxos hidrológicos entre ecossistemas aquáticos tropicais pela Universidade de Miami, esse é apenas um dos fatores que podem estar alterando a dinâmica natural da região. “Essa água está direcionada para dentro do Bailique, e se soma à dinâmica natural do escoamento do rio Amazonas. São mais 3 mil metros cúbicos de água por segundo em direção ao Bailique, erodindo áreas onde a corrente passa mais rápido”, explica Cunha.

Bióloga com doutorado em Ecologia, Janaína Callado diz que é muito complexo afirmar que é uma coisa ou outra sem dados históricos. “Precisamos de pesquisa para entender o que está gerando isso, de respostas baseadas em evidências. E nós não temos dados de 15 ou 10 anos seguidos, nem mesmo de cinco anos”, afirma. Para a professora da Universidade Estadual do Amapá (UEAP), qualquer política territorial para o distrito do Bailique terá de se basear em evidências científicas que orientem onde, como e o que construir. “Ou sempre estaremos construindo escola onde não é para construir, construindo casa onde o rio vai derrubar, como tem acontecido”, alerta Janaína.

Ex-governador do Amapá por dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002), o ex-senador João Capiberibe (PSB-AP) acredita que o impacto das águas do Araguari diretamente na região do arquipélago está diluindo as ilhas. “Se você me perguntar qual é a base científica que existe, eu não tenho. O que eu tenho bastante é experiência de vida e se você vê a corrente de água que passa entre as ilhas, você tem que deduzir que as ilhas vão desaparecer, é quase impossível manter”, afirma.

Questionado sobre como o poder público pode atuar para controlar esse processo, Capiberibe é categórico: a única maneira é modificar o modelo atual de consumo e produção. “Não tem outro. Na Amazônia, nós temos que parar a destruição.”

*Esta reportagem foi apoiada pelo Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário.