28/01/2020 - 7:50
O brilho no olhar ao pegar sua mais recente obra nas mãos denota a paixão de Charles Cosac pela edição de livros. O ofício que exerceu por quase 20 anos à frente da Cosac Naify nunca foi deixado realmente de lado. Nos quatro anos após o fechamento da editora, ele continuou trabalhando no livro Tunga, escrito pela ex-diretora da Whitechapel Art Gallery Catherine Lampert, que será lançado nesta terça-feira, 28.
O livro apresenta de forma organizada toda a obra de Tunga (1952-2016), cujo nome era Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, um dos mais importantes artistas plásticos do País. Apesar de ser publicado pela sua antiga editora, Cosac assegura não ser a volta formal das atividades da empresa, que mesmo fechada, continuou existindo juridicamente.
“Não sei se tenho interesse em mantê-la porque custa. Tem um lado meu que pensa em fazer um livro por ano, que pensa que nada me impede de fazer o livro que eu quiser, na hora que quiser. A editora não renasceu, mas é uma forma de falar também que sempre vai haver uma chaminha dela acesa no meu coração”, explica.
Charles Cosac recebeu o jornal O Estado de S. Paulo no sábado em seu apartamento em Brasília, onde mora há um ano. Folheando as páginas do novo livro, ele conta que a obra é um projeto pessoal e que, por isso, foi mantida sob seus cuidados mesmo após o fim da empresa.
A história de Tunga permeia a carreira do editor. A Cosac Naify surgiu justamente com o livro Barroco de Lírios, escrito pelo artista pernambucano e amigo próximo de Cosac, e encerrou suas atividades com o preparo deste último título.
O editor explica que o trabalho em torno do novo título buscou decifrar a obra completa de Tunga, que queria que ele fosse uma espécie de almanaque.
“É um livro que você lê e tem prazer de entender. Você sente um certo sabor porque ele simplifica a obra do Tunga. Esse livro vai permitir o encontro de várias pessoas com a obra dele”, afirma.
O livro é dividido em duas partes e se difere dos outros produzidos pelo artista por não ter elementos gráficos que foram bastante explorados nos anteriores, como os encartes. A primeira parte traz o texto de Lampert e um outro, não inédito, do crítico inglês Guy Brett, além de um poema ditado por Tunga, chamado Musa, a Cola Poética. A segunda, apresenta um glossário que perpassa toda a sua carreira. “A gente pôs a obra do Tunga na ponta do lápis”, afirma Cosac. O artista, inclusive, teve participação intensa durante a elaboração do texto diretor e do glossário. Chegou a se reunir com Lampert em Londres algumas vezes para discutir pontos específicos do que estava sendo escrito sobre ele.
“Algumas coisas foram alteradas e outras suprimidas. Alguns comentários ou mesmo interpretações que a Catherine fazia acerca da obra dele talvez não fossem tão precisos. Ele interferiu um pouco no texto não para omitir, mas para torná-lo mais preciso”, diz Cosac.
O editor conta ainda que a tradução de alguns termos, por exemplo, demorava dias porque era preciso se chegar a um consenso entre Lampert e Tunga. O texto diretor levou cerca de seis anos para ficar pronto e o artista plástico exigiu a sua tradução do inglês para o português por duas vezes. “Esse texto foi o mais trabalhado dos meus 20 anos de editor, o mais mexido, o mais alterado”, diz.
A segunda parte apresenta uma série de entradas que detalham as suas obras. “É analítico e até um pouco pragmático. A gente tentou mostrar que a obra do Tunga é o símbolo do infinito. É uma obra não linear, que vem e volta, mas sempre vai para frente”, explica Cosac.
Durante a produção do livro, Tunga teve câncer. Segundo Cosac, nesse período ele nunca falava sobre a possibilidade da morte, mas quando ela passou a ser explícita, como ele conta, as pessoas ao seu redor pensaram em pedir a ele que organizasse coisas como seu testamento. “Mas ele categoricamente não queria tocar nesse assunto.”
“O único assunto que ele aceitava tocar era esse livro. Sobretudo as entradas. Parecia que ele estava organizando o ateliê, pondo em ordem as ideias, relembrando de coisas que talvez não estivessem frescas em sua memória e que vinham à tona na medida em que ele era cobrado ou compelido a relembrá-las. Esses glossários terminaram com Tunga vivo. Então, ele viu a primeira e a última obra dele. Ele viu a obra dele como um filme passando”, conta Cosac.
A demora de anos para que o livro ficasse pronto derivou de alguns fatores como a própria agenda lotada de Tunga antes de a doença se agravar, a série de entrevistas que a autora realizou e as burocracias que tiveram de ser enfrentadas para se conseguir autorizações para o uso das fotografias.
A editora optou por usar imagens já existentes e, por isso, teve de ir atrás de quem as detinha. “Teve um trabalho profilático jurídico de calhamaços de autorizações. Nenhuma foto foi tirada, são todas de gavetas e arquivos.
Então, tivemos de contatar pelo menos 50 fotógrafos para resgatar as fotos e pedir anuência de todo mundo que aparecia nelas”, conta Cosac.
A realização do livro também enfrentou dois episódios inesperados. Logo após a Cosacnaify ter fechado as portas em 2016, Tunga morreu em junho do mesmo ano. “Não sei se foi uma maneira de a gente continuar convivendo com a presença dele ou com a obra dele. Achamos que tínhamos de terminá-lo”, diz Cosac.
O livro foi desenhado seis vezes e tinha entre seus realizadores muitos amigos e pessoas próximas a ele. “Era mexer um pouco com a nossa própria intimidade. Foi um livro que gerou muito questionamento de como conduzi-lo, como editá-lo. Gerou também muitas questões éticas, o que era correto, o que não era.”
Para Cosac, a edição dele foi um projeto “antieditorial”. “Nenhum editor jamais enfrentaria um projeto desse por tantos anos, com tantas despesas ocultas, discussões, discórdias, juras de morte e com tanto amor também. É um livro feito com o coração.”
Nessa toada, Cosac diz não conseguir estimar os custos de produção e revela que pouco mais de 300 livros serão vendidos. “Houve muitos custos pessoais, por exemplo, eu paguei as minhas viagens à Inglaterra. As traduções e os ensaios também não foram computados. Se for computar isso, ganha atestado de burrice. É quase um atestado de insanidade o que se gastou. No final a gente não tinha nem dinheiro para imprimir”, disse. A obra captou R$ 150 mil via Lei Rouanet para ser impressa, além de outros patrocínios privados. No total, foram impressos cerca de 1.500 livros, mas a maioria será dada aos colaboradores.
Atualmente, Charles Cosac mora em Brasília e dirige o Museu Nacional da República. A edição de livros, no entanto, não vai parar nesta última obra. Cosac criou com a editora do Supremo Tribunal Federal (STF) um livro com parte do trabalho do fotojornalista Gervásio Baptista, que captou cenas icônicas da política nacional ao longo de seus 95 anos.
Ele reuniu imagens dos presidentes da Corte em cenas de bastidores. “São fotos que não vão sair nas revistas e nos jornais. São as fotos não oficiais de fotos oficiais”, disse. O livro deve ser lançado ainda neste ano.
Cosac também analisa se editará um livro que está sendo produzido pelo artista plástico Nelson Félix. “Falei que se saísse depois do Tunga, eu pensaria em editar. E saiu. Então agora é uma coisa aberta. A gente pode querer terminar esse livro.”
À frente do museu, ele pretende deixar um legado para a Brasília e, por isso, trabalha na montagem de um acervo. “Como fiz muitos livros de artistas e nunca aceitei um presente, agora estou em uma posição que posso pedir para o museu o que eu não aceitei antes, e ninguém fala não para o museu”, diz.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.