Há um bom tempo as redes sociais são atravessadas por discussões sobre o cancelamento de uma determinada figura pública, principalmente artistas, por causa de algo moralmente condenável ou simplesmente politicamente incorreto que ela tenha cometido. Na maior parte dos casos, por violência contra mulheres. No Brasil, até agora essas polêmicas estavam restritas a um público reduzido, porque não costumavam focalizar nomes muito populares. Muito se falou sobre o ator Kevin Spacey, por assédio a menores, o cineasta Woody Allen, tratado como monstro pela ex Mia Farrow e alguns dos filhos dela, o pintor Pablo Picasso, tóxico com todas as mulheres que cruzou na vida, e, mais recente, outro mestre da pintura, Paul Gauguin, que teria molestado jovens nativas no Taiti, país que adotou nos últimos anos de vida.

Agora os brasileiros na rede estão com um prato cheio para despejar opiniões sobre um provável cancelamento em andamento. É fácil entender o aumento exponencial da discussão, já que atingiu o futebol e, mais ainda, um dos times mais populares do esporte, o Corinthians. A contratação de Cuca, técnico com currículo vencedor, que pode exibir na estante uma Libertadores e dois Brasileiros conquistados, em menos de uma semana rendeu quilômetros de comentários. Desses, poucos metros falam de futebol dentro das quatro linhas. No lugar das predileções táticas do treinador, o assunto é mesmo a sentença não cumprida por estupro na Suíça, nos anos 1980, quando ele e três colegas do Grêmio foram condenados por molestar uma jovem de 13 anos.

Não é preciso falar mais nada sobre o caso, bem alardeado por aí, mas a curiosidade recai sobre a relação das pessoas com o episódio. Por mais de 30 anos, a condenação foi citada aqui ou ali, mas nada que impedisse a conclusão da carreira de jogador de Cuca e sua posterior trajetória como técnico. Nos últimos dois ou três anos, o aumento da discussão sobre a violência contra mulheres foi ressuscitando o acontecido. Até a coletiva que deu na semana passada como novo técnico do Corinthians, Cuca não respondia sobre o assunto. Falava sempre de futebol e, de vez em quando, de sua devoção à figura de Nossa Senhora, numa exposição extrema de sua religiosidade.

Mas nomes públicos, como os colunistas de futebol Milly Lacombe, Casagrande e Juca Kfouri, passaram a questionar sistematicamente o treinador. E eis que ele chega justamente ao Corinthians, que tem o melhor time de futebol feminino do País e acaba de lançar a campanha “Respeita as Mina”, contra agressões e ofensas a mulheres nos estádios. A reação foi explosiva. Muros do clube foram pichados com “Fora Cuca”, protestos de vários grupos de torcedores e até do plantel da equipe feminina bombardearam o técnico e sua entrevista coletiva não foi exatamente um sucesso de eloquência. Disse não ser uma pessoa má e que acredita não ter cometido o crime pelo qual foi condenado, mas admite que estava no quarto onde ocorreu a violência, o que já o compromete por não ter feito nada para impedir o ato. Ainda por cima, afirmou querer participar do projeto feminista do clube, mas não conseguiu se lembrar do nome da campanha.

Bem, o futebol é machista e permissivo. Se Cuca colocar o Corinthians no rumo das vitórias, tem grande chance de seguir carreira no clube sem grandes tumultos, embora a derrota para o Goiás por 3 a 1 no último domingo não seja nada animadora nesse sentido. De qualquer forma, a intempestiva reação da torcida diante de sua contratação já coloca o episódio como referência de uma discussão que só cresce na sociedade. Enquanto estava restrita a um atorzinho de Hollywood ou a nomes que a gente só vê no museu, o cancelamento era algo distante. Mas mexeu com a vida do Timão, e aí o caldo engrossa.