O líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, encerrou 2023 com um discurso inflamado à liderança do Partido Comunista, no qual descartou a possibilidade de uma reunificação pacífica com a Coreia do Sul ao classificar as relações bilaterais como sendo de “dois países hostis e beligerantes”, segundo relatou a agência estatal de notícias KCNA.

Kim pregou a expansão exponencial do arsenal nuclear norte-coreano e a intensificação dos testes com mísseis balísticos, além de prometer lançar três novos satélites espiões.

Em seu discurso, o ditador acusou a Coreia do Sul e os Estados Unidos de fazerem “movimentos irresponsáveis” em preparação a uma “invasão” de seu país e disse que “uma guerra na Península da Coreia pode estourar a qualquer momento”.

Pyongyang disparou um número recorde de mísseis em 2023, incluindo o que afirmou ser um míssil balístico intercontinental (ICBM) em dezembro, que seria capaz de atingir qualquer parte do território dos EUA, e também lançou um foguete que colocou um satélite espião na órbita terrestre.

No domingo passado (14/01), o regime disse ter lançado um míssil balístico hipersônico de médio alcance.

Em 6 de janeiro, a Coreia do Sul acusou o Norte de disparar ao menos 60 projéteis de artilharia em águas próximas à ilha de Yeonpyeong, no limite da fronteira marítima da costa oeste da península.

Satélites americanos detectaram a modernização e expansão do complexo químico norte-coreano de Manpho Unha, associado à produção de produtos químicos utilizados em combustíveis de mísseis e reagentes para armas nucleares.

Em dezembro, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) relatou que um segundo reator nuclear em Yongbyon entrou em operação e que ele poderia ser usado para produzir combustível para armas.

Situação “mais grave em décadas”

Um artigo publicado recentemente por dois especialistas no 38 North, um portal analítico administrado pelo think tank Stimson Center, em Washington, alerta que as ações mais recentes de Kim podem ir além da fanfarronice habitual.

Robert Carlin, ex-chefe da Divisão para a Nordeste Asiático do Departamento de Estado dos EUA, e Siegfried Hecker, professor de estudos de não proliferação de armas nucleares do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais em Monterrey, afirmam no artigo que a situação atual é a mais perigosa desde junho de 1950, quando teve início a guerra que dividiu a Península da Coreia.

“Isso pode soar demasiadamente dramático, mas acreditamos que, assim como seu avô em 1950, Kim Jong-un tomou uma decisão estratégica de ir para a guerra”, diz o texto.

“Não sabemos como ou quando Kim planeja apertar o gatilho, mas o perigo já é muito além dos alertas de rotina em Washington, Seul e Tóquio, no que diz respeito às ‘provocações’ de Pyongyang”, observam Carlin e Hecker.

“Não vemos os assuntos sobre preparativos para a guerra, que aparecem na mídia norte-coreana desde o início do ano passado, como uma fanfarronice habitual.”

Mas, o que mudou?

Os analistas dizem que seus alertas estão centrados no fato de o regime norte-coreano ter abandonado seus objetivos de longa data de “normalizar” as relações com os Estados Unidos. Pyongyang estaria agora acreditando que essa seria uma meta impossível.

Carlin e Hecker consideram que muitos analistas e tomadores de decisões estão subestimando a importância desse objetivo de normalização como uma barreira no raciocínio estratégico de Kim.

É “de crucial importância” compreender “como o objetivo central de melhorar as relações com os EUA era fundamental para os três Kims que lideraram a Coreia do Norte”, diz o artigo. O Norte “abandonar completamente esse objetivo muda profundamente o cenário estratégico dentro e fora da Coreia do Norte.”

O fracasso na cúpula de 2019 entreKim e o ex-presidente dos EUA Donald Trump, em Hanói, foi uma “perda traumática de prestígio” para o líder norte-coreano. As conversas giraram em torno da possibilidade de um alívio das sanções ao regime de Kim em troca da redução do programa nuclear de Pyongyang. Nada disso, porém, veio a ocorrer.

Cinco anos mais tarde, a Coreia do Norte acredita que “chegou a hora de desafiar o status quo”, afirma a dupla de especialistas. Dentro dessa perspectiva, o Norte passou a aprofundar seus laços com a Rússia e apoiar a guerra de Vladimir Putin na Ucrânia com o fornecimento de munição.

Ao mesmo tempo, Pyongyang avalia que os Estados Unidos estariam em meio a um “recuo global”.

“Racionalidade” norte-coreana

Mas outros especialistas expressam ceticismo quanto a uma possível preparação da Coreia do Norte para uma guerra.

“O apelo às armas não é incomum na Coreia do Norte”, afirma o especialista em assuntos militares Garren Mulloy, professor de relações internacionais da Universidade Daito Bunka, em Tóquio.

“Não deveríamos estar convencidos de que isso não tem sentido, mas também não deveríamos imaginar que isso significa guerra”, afirmou.

A preocupação, segundo ele, é que qualquer sinal de fraqueza do Ocidente no Oriente Médio, na Ucrânia ou em qualquer outra parte possa dar a Kim a impressão de que esta seria uma oportunidade única, “boa demais para deixar passar”.

O professor de relações internacionais Ryo Hinata-Yamaguchi, da Universidade de Tóquio, diz que o momento para uma aventura militar não é favorável à Coreia do Norte. “O Norte realizou progressos no cultivo da China e Rússia como aliados, e não vejo por que eles iriam querer entrar numa guerra neste momento.”

“O Norte pode até contar com o apoio de Pequim e Moscou, mas não confia o suficiente neles para acreditar que eles sairiam em sua defesa no caso de uma guerra”, disse o especialista à DW.

“Minha sensação é que a liderança norte-coreana não é estúpida, e que Kim e sua irmã [Kim Yo-jong] utilizam a retórica como recurso estratégico para gerar impacto, para elaborar ações que sinalizem guerra sem partir de fato para a guerra.”

“Minha grande preocupação, contudo, não é tanto um ataque planejado à Coreia do Sul ou ao Japão, mas demonstrações de poderio militar que levem a desentendimentos e a um conflito de maneira não intencional”, concluiu.

“Kim não é um lunático”

Carlin e Hecker, porém, insistem que o mundo precisa considerar seriamente a ocorrência do pior cenário e que o Norte “poderia estar planejando agir de maneira que desafie totalmente os nossos cálculos”.

Isso incluiria “o argumento já rotineiro de que Kim não ousaria” lançar um ataque a posições militares americanas porque “sabe” que Washington e Seul “destruiriam o seu regime” se isso ocorresse.

“A literatura sobre ataques-surpresa deveria nos alertar contra presunções cômodas que ressoam na câmara de eco de Washington, mas que não são compartilhadas por Pyongyang”, afirmam.

Mulloy, por sua vez, diz que a narrativa de que a Coreia do Norte não teria outra opção senão a guerra – porque não conseguiu se relacionar com os EUA – “salta muitas lacunas na lógica e na motivação”.

“Kim não é um lunático, mas sim, um ator bastante racional” diz o professor, destacando que o ditador se beneficia de uma aliança mais próxima com a Rússia. Em sua opinião, o regime de Pyongyang não demonstra no momento quaisquer sinais de dissidência interna ou colapso.