Com música composta por Wagner Tiso para documentário sobre João Goulart, letra de Milton Nascimento presta homenagem a estudantes mortos na ditadura.Foi em 1982, durante a campanha de Leonel Brizola (1922-2004) ao governo do Rio de Janeiro, que Silvio Tendler teve a ideia de convidar Milton Nascimento para assinar a trilha sonora do documentário Jango (1984). "Puxa, como eu queria esse cara no filme!", pensou. Para surpresa do cineasta, o cantor e compositor, depois de assistir a algumas cenas na moviola, aceitou o convite. Mas Tendler não se deu por satisfeito: "E se eu convidar o Wagner Tiso também?", indagou, coçando a barba. "Se o Milton topou, o Wagner topa", raciocinou. Não deu outra.
Amigos de longa data, Milton Nascimento e Wagner Tiso se conheceram em 1956. À época, o primeiro, carioca da Tijuca, tinha 14 anos e o segundo, mineiro de Três Pontas, 11. Quem conta essa história é a jornalista Maria Dolores, autora da biografia Travessia – A Vida de Milton Nascimento (Record, 2023). "Os dois moravam na mesma rua, a Sete de Setembro, em Três Pontas (MG). Bituca tinha dois anos quando se mudou para lá", relata a biógrafa. "Pequenino, Bituca sentava no alpendre para tocar sanfona e gaita. Três anos mais novo, Wagner Tiso, ao passar pela frente da casa do vizinho, ficava fascinado." Inspirados no grupo The Platters, Milton e Wagner começaram a tocar juntos em conjuntos de bailes, como Luar de Prata, W'Boys e Berimbau Trio.
Por ocasião da montagem de Jango, Silvio Tendler chamou Milton Nascimento e Wagner Tiso para assistirem a um copião. Emocionado com as cenas que mostram o presidente deposto João Goulart (1919-1976) em seu exílio no Uruguai, Milton chorou baixinho. "Não merecia", balbuciou. Quando ouviu o tema instrumental composto pelo amigo especialmente para o filme, disse: "Vou colocar uma letra nesta música!". Dali, correu direto para casa.
"Quando compus essa música, ganhei mais do que um prêmio"
Com caneta e papel, rascunhou um esboço da letra. Lembrou-se da perseguição que sofreu durante a ditadura, dos estudantes mortos pela polícia e do apoio que recebeu do movimento. Terminada a escrita, refestelou-se no sofá da sala para descansar um pouco. Nessa hora, avistou um vaso pendurado no teto. O nome da planta? Coração de estudante!
"Quando compus essa música, ganhei mais do que um prêmio", relata Milton no episódio da série Por Trás da Canção, do canal Bis. "Quando eu canto, todo mundo aplaude. É uma festa sem fim."
São poucas as vezes em que Milton Nascimento se aventurou a escrever as letras de suas próprias canções. Coração de Estudante é uma delas. Na maioria dos casos, ele compunha apenas a música. Seu parceiro mais frequente foi Fernando Brant (1946-2015). Juntos, os dois compuseram alguns clássicos da MPB, como Travessia (1967), Maria Maria (1979), Canção da América (1980), Nos Bailes da Vida (1981) e Encontros e Despedidas (1985). Houve, também, parceiros esporádicos, como Caetano Veloso (Paula e Bebeto, de 1975), Tunai (Certas Canções, de 1982) e Paulo Ricardo (Feito Nós, de 1987).
"Em geral, Milton compunha a música e, em seguida, convidava algum amigo, como Fernando Brant, Ronaldo Bastos ou Márcio Borges para escrever a letra. Uma curiosidade é que, durante a composição ou quando terminava de compor, já sabia quem seria seu parceiro", explica Maria Dolores.
Hino das Diretas Já
Em novembro de 1983, Milton Nascimento fez três shows no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo. A música escolhida para abrir o álbum que seria gravado ao vivo foi Coração de Estudante. A canção ganhou arranjo de um de seus autores, Wagner Tiso – que, além de reger a orquestra, tocou piano e acordeão.
Composta para o documentário Jango (1984), Coração de Estudante ganhou vida própria. Teve incontáveis regravações, de Mercedes Sosa (1935-2009) a Roberto Carlos, e virou símbolo da redemocratização do país.
"Embora tenha sido menos cantada que Apesar de Você (1978), do Chico Buarque, Coração de Estudante foi o grande hino das Diretas Já", aponta o jornalista Oscar Pilagallo, autor de O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil (Fósforo, 2023). "Milton emplacou outras duas músicas na trilha sonora das Diretas Já: Coração Civil, dos versos ‘Os meninos e o povo no poder, eu quero ver', e Nos Bailes da Vida, que diz 'Todo artista tem de ir aonde o povo está'". As duas são do álbum Caçador de Mim (1981).
"A bem da verdade, o hino das Diretas Já foi, de fato, o Hino Nacional Brasileiro", pondera a historiadora Vânia Cury, autora de Como Saímos de Uma Ditadura: Das Diretas Já à Constituição Cidadã (Mórula, 2023). "Sempre que os comícios contavam com a Fafá de Belém, era o Hino Nacional que ela cantava com grande emoção". Outra música de Milton Nascimento bastante cantada por Fafá de Belém nos comícios pelo Brasil afora foi Menestrel das Alagoas (1983). Parceria com Fernando Brant, foi dedicada ao político alagoano Teotônio Vilela (1917-1983).
"Mataram um estudante. E se fosse seu filho?"
Coração de Estudante não foi a primeira canção composta por Milton em homenagem aos estudantes. Sete anos antes, ele gravou Menino no álbum Geraes (1976). A letra de Ronaldo Bastos é inspirada na história do estudante Edson Luís de Lima Souto (1950-1968). Nascido numa família pobre de Belém (PA), cursou o segundo grau no Instituto Cooperativo de Ensino (RJ), onde funcionava o Restaurante Calabouço, frequentado por estudantes de baixa renda. Foi lá que, no dia 28 de março de 1968, durante um protesto contra o aumento no preço das refeições, Edson Luís morreu com um tiro à queima-roupa.
"A polícia invadiu o local e, sem qualquer justificativa, abriu fogo contra os manifestantes", relata Hugo Silva, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). "A brutalidade do crime chocou o país."
Temendo pelo sumiço da vítima, os próprios estudantes levaram o corpo de Edson Luís para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. No dia do enterro, manifestantes ergueram cartazes: "Bala mata fome?", "Os velhos no poder, os jovens no caixão" e "Mataram um estudante. E se fosse seu filho?".
O assassinato de Edson Luís deu início a uma série de manifestações pelo Brasil, como a Passeata dos Cem Mil, no dia 26 de junho de 1968, no Centro do Rio. Milton Nascimento, entre outros artistas e intelectuais, participou do evento.
No dia 13 de dezembro daquele ano, foi decretado o AI-5, o mais violento dos 17 atos institucionais do regime militar.
"Edson Luís tornou-se um símbolo da luta da juventude contra a ditadura militar", afirma Hugo Silva, da UBES.
Ao contrário de outros artistas, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, Milton Nascimento não partiu para o exílio durante a ditadura. Mas ele também passou por apuros, como ser seguido pelas ruas, receber ameaças pelo telefone e depor no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). No álbum Milagre dos Peixes (1973), três músicas tiveram as letras censuradas: Os Escravos de Jó, de Fernando Brant; Hoje é Dia de El-Rey, de Márcio Borges; e Cadê, de Ruy Guerra. Em vez de excluí-las, o cantor preferiu gravá-las em versões instrumentais.
"Se os jovens soubessem o que é uma ditadura, não iam querer. Só espero que não aconteça mais. Outra dessa o país não aguenta", declarou Milton Nascimento ao jornal O Globo, na edição de 15 de maio de 2022.
"Viva a democracia!"
O compositor Wagner Tiso é um dos mais de 40 convidados de Milton Bituca Nascimento, documentário que estreia nesta quinta-feira (20/3). A cineasta Flávia Moraes registrou os bastidores da Última Sessão de Música, que começou no Rio de Janeiro (RJ), no dia 11 de junho de 2022, e terminou em Belo Horizonte (MG), no dia 13 de novembro. A turnê de despedida percorreu 22 cidades – sete no Brasil e 15 no exterior.
"Bituca é muito complexo. Às vezes, é piadista. Outras, turrão", descreve Moraes. "Em geral, é uma surpresa – divertida e agradável." Um dos pontos altos da turnê foi Coração de Estudante. Nos últimos acordes, Milton bradava: "Viva a democracia!"
Aos entrevistados, como o cineasta Spike Lee, a filósofa Djamila Ribeiro e o rapper Mano Brown, a diretora perguntou: como explicar o fascínio que Milton desperta no Brasil e no mundo?
"Bituca é um cara muito admirado. Todo mundo gosta dele. Não queria fazer um filme chapa-branca ou café com leite. Queria uma análise mais objetiva", afirma a cineasta.
Entre os convidados, estão os já falecidos Sérgio Mendes (1941-2024), Wayner Shorter (1933-2023) e Quincy Jones (1933-2024). Apenas um artista não pôde participar: o cantor e compositor Edu Lobo. Dele, Bituca gravou Beatriz, parceria com Chico Buarque, no álbum O Grande Circo Místico (1983). "O Milton queria muito, mas, infelizmente, não conseguimos. Foi mais fácil conseguir o Quincy que o Edu", brinca a diretora.