Cenas de intimidade entre personagens na dramaturgia são comuns para o público e mais ainda para os atores. Mas, nada é tão fácil na hora de produzir as imagens. Antes de mexer com a emoção do espectador, a execução das cenas pode afetar profundamente o profissional envolvido na cena e até traumatizar. 

Nesta semana, a atriz Carolina Dieckmann, 45 anos, em entrevista para o podcast “Surubaum” relembrou situação que ela classificou como “constrangedora” durante a novela “Vira-Lata”, exibida pela Globo em 1996, quando ela tinha 17 anos e fazia par romântico com Marcelo Novaes. Na época, surgiram rumores de que eles estavam tendo um caso. Só que Marcello era casado com Letícia Spiller, que estava grávida.

“Toda vez que tinha que fazer cena de sexo, eu ficava extremamente constrangida porque o entorno tava escroto, estava ruim”, disse ela.

No início deste mês, Deborah Secco, 44 anos, durante bate-papo no podcast “PodCats”, relembrou um momento complicado durante as gravações para uma novela, quando tinha apenas 18 anos. Ela revelou que ficou pelada diante do diretor Daniel Filho para superar constrangimento e conseguir realizar uma cena de nudez.

“Minha primeira cena nua, com 18 anos, foi com o Daniel Filho, que é como se fosse um pai para mim, um cara que me ensinou tudo. Ele que me chamou para meu primeiro grande papel na Globo, aí ele chega no camarim e fala ‘vai sem calcinha’. Eu gelei, nem sei reproduzir em palavras o pavor que eu senti”, relembrou ela.

A atriz disse que atendeu ao pedido do diretor por ter receio de perder o papel na novela, já que estava em início de carreira.

Não são incomuns situações como essa para o trabalho de ator que, mesmo passado tanto tempo, ainda afetam o emocional dos artistas. 

A boa notícia é que agora as produções para TV é streaming estão investindo em uma técnica desenvolvida recentemente que visa proteger a intimidade dos artistas no momento das gravações de sexo e corpo à mostra. 

“Justiça 2”, produzida para o GloboPlay em 2023 e que começou a ser liberada na plataforma na semana passada, chamou atenção antes da estreia com as cenas entre as personagens de Nanda Costa e Paolla Oliveira, duas mulheres que vivem uma relação conflituosa no dia a dia, e tórrida na cama.

Para a nova produção global, as atrizes contaram com o conhecimento técnico da coordenadora de Intimidade Larissa Bracher, que preparou o elenco para cenas de nudez.

Larissa, que é atriz há 29 anos e já atua como preparadora de atores há pelo menos 13, mergulhou numa causa política de proteção de intimidade dos artistas para cenas de contato físico e exposição de corpos, de forma a garantir a beleza e plasticidade das cenas de nudez. 

Ela recebeu IstoÉ Gente para um bate-papo sobre o trabalho de preparadora de intimidade e explicar os conceitos dessa técnica que começa a ser implementada nas produções brasileiras.

O coordenador de intimidada, segundo ela esclareceu, é o responsável por preparar os atores envolvidos em uma cena de sexo, ou de nudez, com gravação roteirizada, garantindo que esse profissional tenha resguardado o respeito ao seu corpo e suas limitações, bem como a utilização de material de proteção íntima e preparação de equipe envolvida nos stúdios.

Nanda Costa e Paolla Oliveira. Reprodução/Instagram/@nandacosta

Técnica criada recentemente

Larissa Bracher destaca que ensaio para gravações de cenas que envolvem contato físico é uma regra posta em prática há muito tempo, porém em outros campos, como cenas de luta, por exemplo, para garantir as sequências dos acontecimentos, os movimentos sincronizados dos atores e também a integridade física. Mas, essa preocupação não se estendia a gravações em que o ator precisava se despir.

Em 2017, surgiu o movimento “Me Too”, que visava combater o assédio sexual e a cultura de tolerância a comportamentos inapropriados no ambiente de trabalho. A mobilização ganhou força e foi alimentado por relatos de assédio sexual contra figuras importantes de Hollywood. Naquele ano, a atriz Alyssa Milano incentivou as pessoas a compartilharem suas histórias e relatos pessoais de assédio sexual nas redes sociais usando a hashtag #MeToo

E foi em meio a esse movimento que o trabalho de coordenador de intimidade começou a ser pensado. “Os atores ficavam sujeitos às orientações do diretor. Isso passava por cima das limitações do artista, de seus possíveis traumas, e invadiam um campo que não queria, mas acabava se vendo obrigado a abrir. Então, esse preparo tem como finalidade evitar constrangimento de saber o que acontece só na hora de realizar a cena”, exemplifica Larissa.

A técnica do preparador de intimidade engloba vários campos de estudo além do artístico. São levados em conta questões psicológicas, fisiológicas, material de proteção, relação dos atores com o diretor e com a equipe de filmagem, e até questões jurídicas.

“Os atores chegam conscientes sobre o que vai acontecer, não tem surpresas constrangedoras na hora da cena. As pessoas se engajam. As cenas ficam muito mais bonitas. Fazem em menos tempo, mas com muito mais verdade”, diz ela.

Como ninguém pensou nisso antes? 

Essa é a pergunta que muitos se fazem, incluindo a própria preparadora. Larissa explica que a técnica nasceu após uma coordenadora de ação nos EUA encerrar um ensaio de luta com atores que, em seguida, partiam para a produção de uma cena de sexo. Eles foram questionados sobre o ensaio para a gravação de intimidade e responderam que isso não existia. 

Dali, no momento em que o “Me Too” ganhava força, os preparadores de atores se reuniram em uma discussão sobre a gravidade do tema e criaram a técnica a partir de uma série de cuidados e proteção do arista.

“A coordenadora de ação levantou hipótese que a raiz do excesso dos assédios que aconteciam no meio audiovisual se dava por essa falta de ensaio. O ator acaba seguindo a orientação da direção e ficava muito vulnerável”, explica a artista.

E foi nos EUA que Larissa Bracher se dedicou a esse novo campo de preparação de atores. “Uma professora americana, juntamente com a preparadora de luta, criou o protocolo de preparação de cena”, disse ela, destacando que a atuação desse profissional se dá em produções para TV, cinema, teatro e até comerciais que exigem exposição do corpo.

“A coordenação de intimidade, na prática, é um entendimento sobre liberdades e limites individuais em cenas de interação íntima, mas sobretudo, é uma função política que apoia pautas importantes acerca da pluralidade de corpos e existências”, disse ela, destacando que o objetivo final do conjunto de ações de seu trabalho é evitar o assédio.

Larissa, que recebeu certificação em um curso internacional como preparadora de intimidade em 2020, descreve que o seu trabalho vai além da arte. “É uma forma que eu encontrei de contribuir com as pautas, para equidade, preservação do corpo feminino, masculino, corpo negro, fora de padrão. É um trabalho político, interativo”, finaliza ela.

“Justiça 2” é escrita por Manuela Dias com direção artística de Gustavo Fernández e segue a mesma estrutura narrativa da primeira produção, exibida pela Globo em 2016. Nas tramas, quatro histórias distintas de entrepõem e acontecem simultaneamente, com um personagem principal em cada uma delas, mas que são coadjuvantes nas demais.

Sobre a preparadora

Premiada atriz brasileira, Larissa Bracher tem preparado elencos e feito coordenação de intimidade para importantes projetos do audiovisual brasileiro. Em seu currículo recente (2023) constam trabalhos para Prime Vídeo (trilogia “A Menina que Matou os Pais”, “O Maníaco do Parque), Netflix (“DNA do Crime”), GloboPlay (“Ilha de Ferro”, “Reencarne”, “Justiça 2”).

Sua metodologia particular que agrega neurociência, fisiologia das emoções e hipnose tem chamado atenção de centenas de atores ao longo dos últimos 13 anos. Larissa é uma das poucas brasileiras certificadas como coordenadora de Intimidade pela IPA (Intimacy Professionals Association) que segue protocolos internacionais da Sag-Aftra.

Preparadora de atores:

– “Macabro”, longa metragem com direção de Marcos Prado e roteiro de Lucas Parayso;

– “O mecanismo”, Netflix, direção de José Padilha;

– “Ilha de Ferro”, Globoplay, direção de Afonso Poyart;

– “A vida passou por aqui”, direção Alice Borges, texto de Claudia Mauro;

– “A menina que matou os pais, Amazon Prime, direção Maurício Eça e roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes;

– “O menino que matou meus pais”, Amazon Prime, direção Maurício Eça e roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes;

– “Um ano inesquecível- inverno”, Amazon Prime, direção Caroline Fioratti;

– “A confissão”, Amazon Prime, direção Maurício Eça e roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes;

– “Nossa namorada”, cinemas, direção Renata Paschoal, roteiro de Domingos de Oliveira;

-“O maníaco do parque”, Amazon Prime, direção Maurício Eça, roteiro de L.G. Bayão.

Coordenação de Intimidade:

– “Novela”, Amazon Prime, direção Gigi Soares e Renata Pinheiro;

– “Um ano inesquecível – Verão”, Amazon Prime, direção Cris Damato;

– “Um ano inesquecível – Inverno”, Amazon Prime, direção Caroline Fioratti;

– “A confissão”, Amazon Prime, direção Maurício Eça e roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes;

– “DNA do crime”, Netflix, direção Heitor Dhália;

– “Justiça 2”, Globoplay, direção Gustavo Fernandes;

– “Reencarne”, Globoplay, direção Bruno Safadi;

-“O amor da minha vida”, Star+, direção Rene Sampaio;

-“O maníaco do parque”, Amazon Prime, direção Maurício Eça, roteiro de L.G. Bayão.