Ligada ao Ministério da Economia, a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) vem sendo utilizada irregularmente como um canal por onde o governo consegue burlar processos técnicos de licitação pública, como manda a lei, para destinar recursos e investimentos a regiões consideradas estratégicas para aliados de Bolsonaro. De setembro a dezembro de 2020, o ex-capitão acompanhou os procedimentos da ABDI para a liberação de mais de R$ 13,1 milhões usados na compra de equipamentos ultramodernos de segurança, no âmbito do programa Cidades Inteligentes. Tudo sem concorrência e feito para atender os apaniguados do mandatário nos Estados.

A agência adquiriu 64 semáforos inteligentes, 44 câmeras com reconhecimento de placas de carros, 1 drone, 20 luminárias dotadas de filmadoras e softwares produzidos com inteligência artificial. Esses equipamentos foram instalados em três cidades que aderiram ao projeto da ABDI: Salvador (BA), Macapá (AP) e Pacaraima (RR), sempre com o objetivo de atender os interesses de aliados, como o ministro da Cidadania, João Roma, o senador Davi Alcolumbre e o governador de Roraima, Antonio Denarium.

Embora vinculada ao governo federal, a ABDI, por ser uma entidade de serviço social autônomo, não é obrigada a seguir estritamente as mesmas regras de contratação que outros órgãos públicos estão submetidos. Mesmo assim, mantinha a norma imposta pela lei para realizar qualquer compra de equipamentos a partir de licitações públicas. A agência, no entanto, optou por caminhos ao arrepio da lei quando decidiu investir pesado em projetos de tecnologia do trânsito nesses três municípios.

Os entendimentos para favorecer os redutos eleitorais dos amigos começaram em maio de 2020. Naquele mês, a ABDI firmou convênio com o Instituto de Desenvolvimento Tecnológico (INDT) para desenvolver o projeto das Cidades Inteligentes. Segundo o documento, o INDT teria a responsabilidade de aplicar recursos repassados pela agência às cidades envolvidas no esquema. Na prática, o instituto recebeu a incumbência de realizar as aquisições, escolhendo as empresas de forma dirigida, sem passar pelo crivo das formalidades técnicas existentes em processos licitatórios. Em nota, a ABDI informou que, antes de fechar a compra, o INDT precisaria fazer uma consulta de mercado com pelo menos três cotações e escolher, necessariamente, a empresa que apresentasse o menor preço.

O INDT adquiriu os equipamentos tecnológicos, sem licitação, das seguintes empresas: Semex Brasil, Display4, Pumatronix, Control Home Ambientes Inteligentes e Elisys Soluções Inteligentes. Por serem contratos firmados por um terceiro, a ABDI não divulga essas informações em seu portal da transparência, o que inviabiliza verificar se, de fato, essas empresas apresentaram as propostas mais vantajosas. A Semex Brasil, que forneceu toda a parte do sistema semafórico instalado em Salvador e Macapá, já foi investigada por suposta prática de superfaturamento de preços em uma CPI desenvolvida no Mato Grosso.

Parte dos produtos comprados pelo INDT foi destinada a Salvador, cidade comandada até o ano passado por ACM Neto. Com os R$ 5 milhões repassados pela ABDI, o INDT comprou 28 semáforos inteligentes, 36 câmeras de reconhecimento de placas e um novo software para o centro de monitoramento de trânsito do município. A primeira etapa do projeto foi entregue em 8 de dezembro. Dias depois, ACM Neto ajudou Bolsonaro a eleger Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara. Hoje, o ex-chefe de gabinete de ACM Neto na prefeitura, João Roma, é ministro da Cidadania.

Influência política

Também em dezembro, Macapá, por influência do senador Davi Alcolumbre, recebeu os equipamentos comprados pelo INDT com o dinheiro da ABDI. Pelo programa, a capital do Amapá receberá, ao todo, 36 semáforos inteligentes, quatro câmeras de reconhecimento de placas de carro e um novo software para detectar ocorrências de trânsito. O plano prevê ainda a instalação de luminárias inteligentes. As tratativas entre a ABDI e a prefeitura de Macapá foram acompanhadas presencialmente pelo senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que na época era presidente do Senado e seu irmão, Josiel Alcolumbre, candidato a prefeito.

Em fevereiro deste ano, a ABDI anunciou o envio de equipamentos para a fiscalização de fronteiras na cidade de Pacaraima (RR), município próximo à Venezuela. Com investimento de R$ 3,1 milhões, o INDT contratou quatro empresas para fornecimento de 10 luminárias inteligentes, 20 luminárias equipadas com câmeras, um drone e softwares para reconhecimento facial. A manutenção do equipamento instalado em Pacaraima também ficará a cargo do INDT. O acordo para se investir no município foi formalizado em outubro de 2020, quando o governador de Roraima, Antonio Denarium, fiel aliado de Bolsonaro, assinou o memorando de entendimentos com a ABDI. O evento contou com a presença do presidente da agência, Igor Calvet, e também de representantes da PF.

Especialistas em Direito Administrativo ouvidos por ISTOÉ reconhecem que é uma forma de a União aproveitar processos flexíveis de contratação para executar projetos de seu interesse político nos Estados. “Na tentativa de se criar um sistema mais flexível de gestão, acabou-se por criar um amplo espaço para abusos”, afirmou Guilherme Jardim, professor de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). “Esse tipo de contratação desvirtua a lógica natural dos contratos, que passam pela concorrência pública”. A falta de transparência com os negócios públicos leva à suspeita de irregularidades de toda sorte.