Poucas vezes o título de uma Bienal de São Paulo foi tão bem escolhido quanto o da 34ª edição, que abre amanhã para o público no pavilhão do Ibirapuera, em São Paulo. “Faz Escuro Mas Eu Canto” traduz perfeitamente o conceito de resistência pelo qual passa a sociedade hoje. Uma exposição abrangente e importante como a Bienal, que será lembrada durante anos a fio por historiadores e artistas, tem a obrigação de ser um espelho de seu tempo. No Brasil de hoje, que luta contra o coronavírus e a ameaça à democracia ao mesmo tempo, é essencial admitir que o cenário é sombrio – para que a arte, então, possa nos apresentar caminhos para superá-lo.

É bom notar que o verso do poeta amazonense Thiago de Mello, publicado em 1965, não afirma que “está” escuro ou que “é” escuro, mas que “faz” escuro. A questão não é apenas semântica, mas conceitual: a poção nos faz crer que o escuro, aqui, é tratado com uma condição passageira, momentânea, urgente. É o Brasil de hoje, onde precisamos repetir o mantra “vai passar” para não jogarmos a toalha. Impossível esquecer que o verso foi escrito no auge da ditadura. No trecho “… mas eu canto”, vislumbramos palavras que representam a alma do povo, a resiliência, a alegria que escapa da mordaça. No Brasil de hoje, como há muito tempo não se via, “Faz Escuro Mas Eu Canto”.

A Bienal que celebra 70 anos era para acontecer no ano passado, mas foi adiada pela pandemia. Em relação à curadoria das obras, não é coincidência perceber que traz um número recorde de artistas indígenas. “Se deseja ser universal, canta a sua aldeia”, já dizia Tolstói. Não, portanto, nada mais universal que o trabalho de Daiara Tukano, Jaides Esbell, Sueli Maxakali, Gustavo Caboco, Uýra, entre outros. Ao dividir o espaço cosmopolita da Bienal com instalações europeias, performances norte-americanas, esculturas africanas e clássicos sem fronteiras como Giorgio Morandi e Lasar Segall, essas obras nativas do Brasil nos ajudam a compor uma identidade única: a do ser humano.

O projeto do curador Jacopo Crivelli Visconti, que expande a Bienal para outras instituições além do prédio projetado por Oscar Niemeyer – seria uma referência ao “além-mar” dos colonizadores? –, é importante porque prevê uma nova relação com o público. Uma vez que não podemos sair de casa, por que a arte não pode ir aonde estamos? Talvez não seja uma ideia nova. É uma abordagem global, mas que no Brasil de hoje ganha um insuperável contexto local. Afinal, faz escuro em todo o planeta, mas ninguém canta tão alto como nós, brasileiros.