A enfermeira Quésia Ferreira, de 28 anos, se prepara para um longo dia de atendimento aos sem-teto nas ruas do Rio de Janeiro. Ela integra o programa Consultório na Rua, que leva saúde e cidadania a esta população marginalizada.

A lista de locais a visitar com sua equipe é extensa e inclui regiões como a cracolândia na Favela do Jacarezinho (zona norte), onde a população convive com lixo, esgoto a céu aberto, uso intenso de drogas e a violência.

“O Consultório na Rua permite o atendimento de saúde pública a uma população que não consegue chegar sozinha ao SUS. É um exemplo de sistema público de saúde funcionando de fato”, explica a enfermeira, que leva consigo uma grande mochila com remédios de todo tipo, enquanto em outro canto da sala, uma pequena caixa térmica com vacinas contra covid-19 e gripe está pronta para o transporte.

Quésia integra uma das 13 equipes do programa, criado em 2011 pela Prefeitura do Rio, e que hoje atua em 118 bairros da zona sul à zona oeste da cidade.

Cada equipe multidisciplinar é formada por profissionais como médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, e atende pacientes sem endereço, telefone e que, em alguns casos, sequer têm nome e sobrenome.

Segundo dados da Prefeitura, no primeiro semestre deste ano, o Consultório na Rua realizou cerca de 20 mil atendimentos e mais de 36 mil procedimentos, que incluem de vacinação a testes rápidos, como exames de gravidez e de detecção de ISTs, como HIV e sífilis.

– “Quando o crack entra, não tem saída” –

Formado em engenharia robótica, X., de 41 anos, é uma das pessoas em situação de rua atendidas pelo programa na cracolância do Jacarezinho.

Sem camisa e segurando uma pedra de crack e um cachimbo, ele conta que viajou pelo mundo e que é fluente em três idiomas. Falando um inglês perfeito, com forte sotaque do sul dos Estados Unidos, ele diz que trabalhou em plataformas de petróleo em alto-mar e virou morador de rua após experimentar crack.

“Estou há pelo menos cinco anos nas ruas. Eu bebia muito, era marinheiro. (Um dia) saí da plataforma, procurei o primeiro ponto onde conseguiria comprar crack e nunca mais voltei para aquela vida”, relata.

“Quando o crack entra na sua vida, parceiro, não tem mais saída”, acrescenta, quase como um lamento.

– Vivendo em ‘Bagdá’ –

Em outro ponto da zona norte, a equipe do Consultório na Rua atende os sem-teto no local conhecido como Gruta, mas apelidado pelos moradores de Bagdá.

À sua volta, há muito lixo e fios desencapados pelo chão. Ao fundo, uma manilha jorra esgoto sem parar perto de barracos de madeira. Um rio poluído corre ao lado, debaixo de uma ponte onde usuários de crack se concentram, escondidos do mundo exterior.

Ali, uma mulher de sorriso largo e óculos de armação dourada se aproxima da equipe e abraça cada um dos profissionais vestidos com coletes azuis. Vítima de violência doméstica, Z. fugiu de casa e passou a usar drogas. Moradora de ‘Bagdá’, tornou-se uma espécie de prefeita do local.

“Essa galera é tudo pra gente. Depois de Deus, são essas mulheres na minha vida, cuidando da gente. Amo mais que os maridos”, brinca.

A médica Yasmine Nascimento, de 33 anos, diz que atende a população mais marginalizada da sociedade por opção. Segundo ela, esse trabalho traz um sentido maior para a sua vida.

“A medicina pra mim é uma troca e o trabalho no Consultório da Rua faz sentido pra mim. Eu consigo criar um vínculo com os pacientes”, conta Yasmine, depois de trabalhar nas ruas da cidade, a segunda mais populosa do país, com 6,2 milhões de habitantes.

De acordo com o Censo da População de Rua 2022, da Prefeitura do Rio, 7.865 pessoas viviam nas ruas da cidade no ano passado – número 8,5% superior ao de 2020.

Em todo o país, a população de rua superou 281 mil pessoas em 2022, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que estimou em 211% o aumento em dez anos deste segmento vulnerável da população brasileira.

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