Autoridades chinesas começaram a construir no Tibete a maior hidrelétrica do mundo, levantando temores na vizinha Índia, que vê risco de Pequim controlar o fluxo de água na região.A China começou a construir em julho o que promete ser a maior usina hidrelétrica do mundo. A barragem será erguida no rio Yarlung Tsangpo, a cerca de 30 quilômetros da fronteira disputada com o estado indiano de Arunachal Pradesh – área no nordeste da Índia também reivindicada por Pequim.
O plano provocou imediato atrito com autoridades indianas, tanto pelos riscos ambientais que podem afetar o ecossistema da região do Tibete quanto pelo possível poder que a barragem dará à China sobre o fluxo de água do rio Yarlung Tsangpo – considerado o mais alto do mundo –, que segue do território chinês para o nordeste da Índia e Bangladesh.
Grupos tibetanos também afirmam que há locais sagrados ao longo do rio e que o governo não informou se esses pontos serão afetados.
O projeto, estimado em 170 bilhões de dólares (R$ 924 bilhões), pretende gerar 300 bilhões de quilowatts-hora de eletricidade por ano, fornecendo energia principalmente para outras partes da China e atendendo à demanda local no Tibete. A capacidade da hidrelétrica pode superar a da também chinesa Três Gargantas, atualmente a maior do mundo.
Disputa de fronteira de longa data
Especialistas acreditam que a hidrelétrica pode reacender tensões entre Índia e China, apesar de os países darem sinais recentes de cautelosa melhora nas relações.
China e Índia se acusam mutuamente de tentar tomar território ao longo de sua fronteira de fato, conhecida como Linha de Controle Real (LAC), que a Índia afirma ter 3.488 quilômetros, enquanto a China diz ser menor.
Após anos de tensão, ambos renovaram esforços para normalizar as relações. Em janeiro, concordaram em retomar voos comerciais após quase cinco anos de suspensão. Três meses depois, representantes dos dois lados decidiram reabrir rotas de peregrinações religiosas e o comércio fronteiriço.
No entanto, o projeto da barragem cria um novo ponto crítico, pois as mudanças ecológicas devem gerar uma série de questões geopolíticas e ambientais ao longo do Himalaia inferior.
Barragem pode reter água e sedimentos
Além do risco de a construção restringir o fluxo fluvial que abastece o nordeste da Índia, a barragem poderia reter sedimentos fundamentais para planícies mais baixas.
Diante da escalada do projeto, a Índia considera que o Mecanismo de Nível de Especialistas (ELM) – um acordo bilateral que obriga a troca de dados hidrológicos sobre rios que cruzam os dois países – não será suficiente para suprir a demanda por informações sobre os fluxos do Yarlung Tsangpo.
A ideia inicial do ELM era aumentar a transparência para evitar inundações, já que a Índia é afetada pelo fluxo de alguns rios que partem de áreas mais altas em território chinês. Contudo, Pequim costuma fornecer estas informações apenas durante a estação das monções.
"No longo prazo, como argumenta a Índia, a barragem não apenas reterá sedimentos ricos em nutrientes vitais para a fertilidade do solo a jusante em Assam e Bangladesh, afetando assim a irrigação", disse Aravind Yelery, professor associado do Centro de Estudos do Leste Asiático da Universidade Jawaharlal Nehru, à DW. Ela também "impactará a produção agrícola, a produtividade das lavouras e comprometerá os ecossistemas fluviais", acrescentou Yelery.
Na avaliação dele, a postura da China de alterar unilateralmente o ecossistema fluvial de um rio transfronteiriço é desastrosa do ponto de vista ambiental e diplomático.
Há risco de exploração da água?
"Do ponto de vista legal, a China está adotando um caminho ilícito ao negligenciar sua responsabilidade de preservar os fluxos fluviais devido a ambições geopolíticas", disse Yelery, acrescentando que isso já impactou a estratégia indiana nas negociações fronteiriças.
A China adotou postura semelhante no passado em relação ao rio Mekong, que nasce no planalto tibetano e segue para países como Mianmar, Laos, Tailândia, Camboja e Vietnã. Desde meados da década de 1980, Pequim assumiu controle a montante do rio, onde construiu até o momento 11 barragens.
"A China não celebrou nenhum acordo fluvial com seus vizinhos, apesar de controlar os mananciais da maioria dos principais rios da Ásia", disse Atul Kumar, especialista em China e membro da Fundação de Pesquisa Observer, à DW.
"Pequim adotou postura semelhante no caso do Yarlung Tsangpo e manteve Índia e Bangladesh desinformados sobre esses projetos. Até mesmo o compartilhamento de dados hidrológicos – um detalhe técnico inofensivo – muitas vezes depende da relação bilateral e, em períodos de tensão, fica indisponível", disse Kumar.
China diz que não busca "hegemonia fluvial"
A China vem defendendo em repetidas ocasiões que o projeto não afetará os países que dependem do rio. Em julho, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Guo Jiakun, disse que a barragem "não terá qualquer impacto negativo nas regiões a jusante".
Autoridades chinesas também dizem que não procuram uma "hegemonia fluvial". "A China continuará a manter os atuais canais de intercâmbio com os países a jusante e a intensificar a cooperação em matéria de prevenção e mitigação de catástrofes", afirmou um representante do ministério em dezembro.
"Ameaça existencial"
O governador do estado indiano de Arunachal Pradesh, Pema Khandu, porém, acredita que o megaprojeto é uma ameaça existencial muito maior do que a ameaça militar.
"O problema é que a China não é confiável. Ninguém sabe o que eles podem fazer", disse Khandu à agência indiana PTI. Ele destaca que Pequim não assina tratados internacionais sobre águas que poderiam obrigá-la a seguir normas globais.
Kumar também alertou para o risco de falha na barragem, que "sempre será uma bomba-relógio para as áreas a jusante no nordeste da Índia e em Bangladesh".
"Em um Himalaia instável e propenso a terremotos, um desastre natural, conflito ou até sabotagem pode causar destruição generalizada nas áreas a jusante", disse Kumar.
O ex-diplomata indiano Anil Wadhwa defendeu a construção de um mecanismo consultivo e disse que a China deveria divulgar detalhes sobre a capacidade da barragem, os fluxos de água e alinhamentos assim que a construção estiver concluída.
"É fundamental que a Índia adote todas as medidas defensivas em Arunachal Pradesh, construindo sua própria barragem o quanto antes", disse Wadhwa à DW. "A oposição local deve ser compensada e a comunicação aberta com a comunidade afetada ajudará a evitar que o problema cresça, como já vimos com outros megaprojetos no país."
Esse sentimento foi compartilhado pelo ex-diplomata indiano Ajay Bisaria: "Dada a recente história da China de usar a interdependência econômica e o comércio como ferramenta geopolítica, a Índia deve presumir que a China vai transformar a água em arma."
"Embora a disposição da China em fazê-lo seja evidente, sua capacidade e viabilidade técnica ainda precisam ser verificadas. Para mitigar esse risco, a Índia deve avaliar proativamente e simular o pior cenário possível", concluiu Bisaria.