Jair Bolsonaro demorou a falar pela primeira vez à sua horda de extrema direita, no cercadinho do Palácio da Alvorada, após a derrota para Lula nas urnas. O ex-presidente o fez apenas em 9 de dezembro, quando, diante de dezenas de apoiadores que pregavam uma intervenção militar, declarou que as decisões que cabem a um grupo de pessoas e, não somente a ele, “devem ser trabalhadas” e frisou que seu futuro político seria decidido pelos radicais. “Se algo der errado, é porque eu perdi a minha liderança”, completou. O discurso, naquele momento, soou dúbio e enigmático. O pano de fundo, contudo, esclarece que tudo fazia parte do enredo de uma trama golpista. Naquele dia, Bolsonaro e o ex-deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) receberam no Palácio da Alvorada o senador Marcos Do Val (Podemos-ES) para tentar convencê-lo a embarcar em um projeto de golpe de Estado para impedir a posse de Lula, que, naquela altura, ainda nem havia sido diplomado.

PRESO Pivô da trama golpista revelada por Do Val, o ex-deputado Daniel Silveira foi preso no dia 2 por descumprir medidas cautelares. Na detenção, R$ 270 mil foram apreendidos (Crédito:Pedro Ladeira)

O encontro aconteceu a portas fechadas com a presença apenas dos três. Na conversa, segundo relata o senador, Daniel Silveira deu detalhes “de um plano esdrúxulo e criminoso”. Propôs que Do Val pedisse um encontro de agenda fechada com o ministro Alexandre de Moraes, membro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, e o instigasse a dizer algo comprometedor, que pudesse servir de munição para embasar a prisão do próprio magistrado. “Eles colocariam um equipamento de gravação em mim e teria um veículo próximo ao STF captando o áudio. Eu, nessa reunião com Alexandre, precisaria conduzir o rumo do diálogo, para ele falar que, em algum dos processos que relata, havia ultrapassado a linha da Constituição”, narra Do Val.

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Com a exposição do ministro, conforme a trama conspiratória, seria armada a tempestade perfeita para Bolsonaro apontar uma suposta interferência de Moraes na corrida presidencial e tentar anular o resultado das eleições, perpetuando-se no poder. O senador não foi escolhido para a missão ao acaso — ele e o ministro se conhecem há anos, desde a época em que Moraes atuava como secretário de Segurança de São Paulo, na gestão Geraldo Alckmin, e Do Val prestou serviços de treinamento policial para agentes da Polícia Militar paulista. Seria, portanto, um nome bolsonarista ideal para se aproximar do presidente do TSE sem levantar suspeitas.

Do Val alega que, durante a conversa, chegou a ponderar que a gravação clandestina de um ministro seria ilegal. Ouviu de Silveira, então, que já havia uma “equipe preparada” para “legalizar” a escuta — o senador assegura que não houve menção ao nome de quem poderia tornar a armadilha válida. O congressista acrescenta que, para não ser pressionado, disse que pensaria no assunto e deixou a residência. Pouco depois, recebeu uma mensagem do deputado, reiterando o plano. “Essa operação precisa ficar restrita a um círculo de cinco pessoas. Três estavam sentados hoje conversando juntos. Se aceitar a missão, parafraseando o 01, salvamos o Brasil”, dizia o texto. Os outros dois, segundo Silveira, seriam “cinco estrelas”, dando a entender que dois generais estariam a par do golpe.

Do Val não fala abertamente, mas a armação contra Moraes soa como o primeiro passo para uma investida ainda mais grave de Bolsonaro, como a assinatura, por exemplo, de um decreto que implementaria o Estado de Defesa no TSE. Uma minuta da norma foi encontrada pela PF na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, preso após o atentado de 8 de janeiro. Além disso, segundo admitiu publicamente Valdemar Costa Neto, documentos similares circulavam pelas mãos de diversas pessoas do círculo íntimo de Bolsonaro.

ARTICULAÇÃO Bolsonaro convidou o senador Do Val no dia 7 dezembro para discutirem a trama contra Moraes (Crédito:Chandan Khanna)

Revelação e recuo

Do Val titubeou ao falar de Bolsonaro. Na madrugada da quinta-feira, 2, o senador havia feito uma live afirmando, com todas as letras, ter sido “coagido” pelo presidente a aderir à tentativa de golpe. “Eu ficava p*** quando me chamavam de bolsonarista. Vocês me esperem que vou soltar uma bomba. Sexta-feira vai sair na Veja a tentativa de Bolsonaro de me coagir para que eu pudesse dar um golpe de Estado junto com ele, só para vocês terem ideia. E é lógico que eu denunciei o plano”, disse Do Val. No início da tarde, no entanto, em entrevista coletiva, criticou a imprensa pelo uso do termo e mudou a versão, apontando que o capitão permaneceu calado durante o encontro, limitando-se a ouvir os detalhes vocalizados por Silveira. Indagado se em algum momento Bolsonaro interrompeu a fala do ex-deputado, o senador diz que não: “Não, Bolsonaro não impediu o Daniel”. Do Val ainda evitou avaliar se o capitão cometeu crime. “Fiz meu papel de não prevaricar”, comentou, sublinhando ter contado toda a trama a Moraes, enquanto a movimentação golpista corria. O senador arrefeceu o tom contra o capitão após receber ligações de Flávio Bolsonaro e de aliados do ex-presidente, como Rogério Marinho.

Segundo Do Val, a reunião golpista havia sido articulada por Bolsonaro. O senador diz que, no dia 7 de dezembro, uma quarta-feira, Silveira o procurou no Senado para, do lado de fora do plenário, colocá-lo na linha com o capitão. “Bolsonaro pediu que eu fosse encontrá-lo”, conta. “Nunca tinha tido uma agenda com ele. Por isso, achei estranho.” O senador acrescenta que, no dia, participava de uma votação nominal e, por isso, a conversa ficou para sexta-feira, 9. Não bastasse o gesto inicial de Bolsonaro, Do Val conta que não pôde ir até a residência oficial no Palácio da Alvorada em seu próprio carro. Conforme decidiu Silveira, os dois chegaram ao local em um automóvel da Segurança da Presidência da República.

REAÇÃO Alexandre de Moraes mandou a PF ouvir Marcos Do Val no prazo de cinco dias (Crédito:EVARISTO SA)

Os meandros da articulação terão de ser esclarecidos por Do Val à PF, conforme ordem de Alexandre de Moraes. O senador diz que entregará aos delegados os registros das conversas por WhatsApp com Silveira, nas quais o deputado fez uma série de cobranças sobre a decisão dele a respeito da trama, que não foram findadas nem depois de Do Val responder que não aceitaria a missão. O áudio do diálogo com Silveira e Bolsonaro, pontua o senador, não foi gravado. Na última quinta-feira, 2, o ministro Alexandre mandou prender o deputado Silveira por ele tentar arrancar a tornozeleira que o mantinha em prisão domiciliar. Em sua casa, a PF apreendeu também R$ 270 mil em dinheiro vivo. No Supremo, crê-se que a revelação de mais um movimento golpista robustece o processo contra Bolsonaro e amplia o risco de prisão. Interlocutores de Moraes afirmam que o ministro não se posicionará publicamente sobre o assunto. “Está judicializado. Ele deve se manifestar somente no processo.” O cerco em torno de Bolsonaro se fechou ainda mais. É compreensível a resistência do ex-presidente em voltar para o Brasil.