Conselho Federal de Medicina ainda trata a pandemia como fato político

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Conselho Federal de Medicina (CFM) Foto: Divulgação

Não sou médico, mas vou arriscar um diagnóstico sobre o estado do nosso Conselho Federal de Medicina (CFM): péssimo.

É inacreditável constatar que um órgão criado em 1951 para fiscalizar e normatizar a prática médica seja capaz de emitir um ofício como o que foi enviado à Anvisa na última segunda-feira 13, assinado por seu presidente, José Hiran da Silva Gallo.

Infelizmente, o documento não é nenhuma surpresa, considerando o comportamento do CFM durante o período mais crítico da pandemia. Defensores da ideologia bolsonarista, uma entidade que se apresenta como científica chegou ao absurdo de recomendar remédios comprovadamente ineficazes, atrapalhando o combate ao coronavírus e provocando resultados catastróficos. Como cidadão brasileiro, sinto vergonha dos médicos que endossam essa atitude. No ofício enviado no início da semana, voltam a provar que são, provavelmente, o único órgão governamental do mundo que ainda encara a pandemia do ponto de vista predominantemente político.

Na nota, José Hiran da Silva Gallo trata o uso de máscaras como “ideologia”. Em primeiro lugar, médicos não devem falar sobre política, sociologia ou qualquer outra área que não seja a medicina. Afinal, não entendem nada do assunto. Fazer uma relação entre uso de máscaras e ideologia é algo tão bizarro quanto eu, que sou jornalista, tentar ensinar a eles onde fica o coração.

Há um parágrafo na nota que chama a atenção, pelo absurdo lógico e pelo negacionismo retórico: “O uso de máscaras como sinalização de virtude ou como medida de sensação de pertencimento social jamais podem ser impostas a pessoas que não compartilham de tais ideologias ou comportamentos, em especial na ausência de evidência científica ou mesmo eventual prejuízo à saúde do paciente”.

O texto é bem confuso. Talvez o revisor não tenha compreendido a letra do médico que o redigiu. Se for isso mesmo, a nota associa o uso de máscaras a uma “medida de pertencimento social” e à “sinalização de virtude”. É isso mesmo? A qual comunidade essas pessoas que usam máscaras desejariam pertencer? Ao mundo dos vivos? E qual é a virtude que as máscaras sinalizam? A de não querer contrair uma doença? Me parece um texto bem distante do mundo da lógica.

Seria um mero detalhe dizer que a concordância gramatical deveria ser enviada para a UTI. O problema é o raciocínio, que fica ainda pior: “O uso de máscaras como sinalização de virtude ou como medida de sensação de pertencimento social jamais podem ser impostas a pessoas que não compartilham de tais ideologias”.

Novamente, vou tentar interpretar o texto, já que o bom senso aqui fica meio prejudicado. Se eu entendi, ele diz que não podemos exigir medidas de proteção sanitária a quem não concorda com isso? Apenas aos ‘que compartilham de tais ideologias’? Me parece pouco eficaz que apenas gente sensata seja obrigada a usar máscaras, deixando os negacionistas de fora das regras, espalhando livremente seus perdigotos infectados por aí.

Mas o trecho mais importante, do ponto de vista médico, é a conclusão do parágrafo: “(…) na ausência de evidência científica”, conclui o médico. Sei que a nota completa traz diversas citações de estudos que tentam minimizar a importância das máscaras. Fico surpreso que um médico, em sua recomendação, busque justamente os estudos mais alternativos e nebulosos, em vez dos que têm respaldo da Organização Mundial da Saúde (OMS). Que tal recomendar vacina, distanciamento social, máscaras… em vez de falar de cloroquina e virtudes?

Talvez eu esteja pedindo demais, mas seria interessante que o presidente do Conselho Federal de Medicina de um país lesse as recomendações que estão no site da OMS. Lá tem vários relatórios que comprovam a eficácia das máscaras contra a disseminação do coronavírus. Não tem nada de ideologia, nem pertencimento. Tem situações específicas onde as máscaras devem ser usadas, perto de multidões, locais sem ventilação e muitos outros casos. Aos membros da CFM, a minha receita seria uma só: concentrem-se no lado técnico. A eleição já acabou, mas a pandemia, não. Do jeito que está, o Conselho Federal de Medicina é prejudicial à saúde dos brasileiros.