RESUMO

• Governo deixa de lado bandeiras históricas, concentra esforços na economia e sofre seguidas derrotas
• Congresso o impele para a pauta dos conservadores e movimentos sociais tentam puxar Lula de volta à esquerda
• Eles criticam as intermináveis concessões a adversários históricos

As sucessivas derrotas em votações importantes no Congresso não apontam apenas para a fragilidade do governo. Na ponta do lápis, elas significam que a maioria conservadora está impondo as regras de governança e forçando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a aceitar como fato consumado a pauta do conservadorismo em temas que foram promessas de campanha e que são caros aos segmentos de esquerda.

A direita dá as cartas no Congresso em matérias de segurança, sistema prisional, reforma agrária, demarcação de terras indígenas, temas de costumes e, em economia só votam com a base governista em temas que também defendem – como se viu na semana passada durante a taxação das compras no exterior até US$ 50.

A bancada conservadora ganhou de 314 a 126 na derrubada do veto à saidinha de presos e de 317 a 139 na manutenção do veto do governo Jair Bolsonaro ao projeto que criminalizava mentira e desinformação, um placar que dá ao governo um volume de votos menor do que o mínimo necessário para impedir uma PEC bomba (206) ou rejeitar, por exemplo, um pedido de abertura de impeachment (172).

Com a popularidade em queda nas pesquisas e jogado às cordas a cada votação em sessões conjuntas do Congresso, o governo anda numa corda bamba e sofre frequentes quedas sempre que ruralistas, evangélicos, bancada da bala e extremistas ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro se unem.

A cada derrota, a recorrente explicação: a promessa de rearticulação da base de apoio, reconhecimento de que o governo e seu núcleo político erram e uma nova cobrança aos aliados do Centrão para que entreguem os votos prometidos.

Na correlação de forças com o extremismo, o governo empata, com 114 votos para cada lado. O problema é o meio. Quando depende de aliados como MDB, União Brasil, PSD, PP e Republicanos, a coalizão desanda. Os cinco partidos, a joia da coroa do centro, ocupam juntos um total de 11 ministérios, mas pagam os cargos com traição.

Na votação do veto à saidinha eles contribuíram com 177 votos para a derrota do governo, que contou ainda com fogo amigo na fileira do PT: a deputada Maria do Rosário (RS) e o senador Fabiano Contarato (ES), líder do partido até fevereiro, com diferentes justificativas e que votaram alinhados ao bolsonarismo.
• No caso de Rosário que, como candidata à Prefeitura de Porto Alegre este ano não quis contrariar o eleitorado conservador, a explicação ficou pior do que o voto. Ela considerou o veto do governo um equívoco e disse que votou pela derrubada para se fazer ouvir pela extrema-direita, que sempre a elegeu como alvo de ataques.
Contarato, que é delegado de polícia, tem uma explicação mais lógica e coerente à sua formação: avalia que a saidinha é um benefício exagerado a detentos que cometem homicídio e já contam com pena abrandada pelo regime de progressão e remissão penal que, numa hipotética condenação de nove anos, não passariam mais de dois anos e alguns dias encarcerados.

Na segunda-feira, 3, Lula reuniu seu núcleo político palaciano e os líderes no Congresso para um balanço da derrota. O presidente reconheceu que faltou engajamento do governo como um todo, pediu que em futuros embates a base mapeie antecipadamente os votos com os quais pode contar e determinou que os parlamentares exerçam um diálogo mais produtivo com os ministros de cada partido com assento na Esplanada.

Foi a repetição do jus esperneandis a que governistas se habituaram. Veio do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a explicação padrão. “O presidente Lula e a articulação política têm total noção realista do que é o perfil do Congresso”, disse, como se esse cenário não tivesse sido desenhado no primeiro turno das eleições de 2022, quando Bolsonaro teve menos votos que Lula para presidente, mas elegeu a maior e mais conservadora bancada da história.

Congresso empurra Lula à direita e vê governo emparedado
Padilha diz que Lula conhece o perfil do Congresso: mesmo assim, o Planalto não para de perder (Crédito:Mateus Bonomi)

O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (AP) foi mais explícito sobre o que realmente está em jogo. Segundo ele, a prioridade do governo é a pauta econômica, o que significa que outros temas de gênero e costumes, ou que impliquem em confronto desfavorável com a direita, ficarão num segundo plano.

O que importa é manter o pacto da governabilidade, baseado, segundo ele, no compromisso recíproco de “melhoria da qualidade de vida do brasileiro e na manutenção da democracia”, o que implica em resignar-se diante de um adversário que vai continuar tensionando para desgastar o governo junto às suas bases sociais.

A oposição comemora, é claro, com o direito de desdenhar, como fez o líder da minoria, senador Rogério Marinho (PL-RN): “O governo está decaindo rapidamente. E o Haddad (ministro Fernando Haddad, da Fazenda) não tem mais coelhos para tirar da cartola”. O senador Ciro Nogueira, bolsonarista do PP, ainda provocou: “Foi um grito contra a pauta da esquerda”.

Política indigenista

Ao focar na economia, o governo joga a toalha na disputa por matérias que são caras à base social que o apoia.

Quando perdeu no Congresso a batalha sobre a desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia e dos pequenos municípios, o governo judicializou o caso no Supremo Tribunal Federal e ganhou uma liminar para negociar com a direita, o que resultou num acordo.

em relação ao marco temporal, Lula aceitou sem luta a nova lei promulgada pelo Congresso logo depois da derrubada do veto. Embora o caso esteja num limbo jurídico por duas decisões opostas, uma do STF, que derrubou o marco temporal, e outra pelo Congresso, que colocou a tese em pé novamente, o Palácio do Planalto não se esforçou para fazer avançar uma questão que é o coração da política indigenista.

Congresso empurra Lula à direita e vê governo emparedado
O líder Jaques Wagner virou apóstolo do governo num Congresso hostil a Lula (Crédito:Jeferson Rudy)

Ao contrário: suspendeu a homologação de quatro terras indígenas cujas demarcações já cumpriram todos os trâmites legais e só aguardavam a entrega aos índios.
Lula ainda admitiu às próprias lideranças das etnias que estava suspendendo a pedido dos políticos da direita ruralista, como foi o caso das TIs Xukuru Kariri, em Palmeira dos Índios, em Alagoas, e Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, depois de gestão feita pelo governador Jorginho de Melo (PL), que é unha e carne com Bolsonaro.
Em Alagoas, atendeu a pedido do governador Paulo Câmara, do presidente da Câmara, Arthur Lira, do ex-presidente e ex-senador Fernando Collor e do clã Calheiros, o senador Renan e seu filho Renanzinho, ministro dos Transportes, todos eles com interesses dentro da reserva.

Os sinais trocados do governo e de suas lideranças no Congresso podem não resultar em rompimento, mas afastam Lula e o PT dos movimentos sociais de esquerda, que já manifestam críticas às intermináveis concessões a adversários históricos.

Esses grupos acham que há bondade demais e pouca reciprocidade da direita. O governo deu centenas de cargos aos conservadores e, no Orçamento deste ano, liberou R$ 53 bilhões em emendas parlamentares, das quais mais de R$ 20 bilhões serão pagas este mês, no período pré-eleitoral.

Ainda assim, a bancada ruralista não se afasta um milímetro dos projetos que agridem o meio ambiente e impedem as demarcações de terras indígenas.

Os dirigentes dos movimentos reconhecem que, sem votos, Lula luta para mitigar as derrotas e, na linha do “ruim com ele, pior sem ele”, tentam empurrar o governo de volta à esquerda.

Gustavo Vieira, presidente da Indigenistas Associados, entidade que apoia a causa indígena, conta que o esforço para atenuar a tragédia envolvendo os Yanomamis é um bom parâmetro: enquanto o ruralismo fez o que pode para travar o orçamento da Funai, de R$ 800 milhões para este ano, os movimentos trabalharam para que o governo editasse uma MP de R$ 1 bilhão, cujos recursos foram todos aplicados antes que a medida caducasse.

“Lula atendeu aos governadores, paralisou a demarcação de quatro terras indígenas e a bancada ruralista impôs o marco temporal, que neste momento está sub judice. É ruim, mas, por outro lado, também não há como Lula deixar de entregar as terras aos indígenas. O ruralismo teve uma vitória de pirro. Tudo o que era necessário foi feito de acordo com a Constituição. Lula recuou para garantir governabilidade.”

Congresso empurra Lula à direita e vê governo emparedado
Maria do Rosário votou por conveniência pelo fim da saidinha, aliando-se à direita (Crédito:Evaristo Sa)

Os casos atuais nem de longe lembram o Lula 1 que, num momento mais tenso, em 2005, com o apoio do STF, entregou pacificada às etnias de Roraima, a TI Raposa Terra do Sol, de 1,7 milhão de hectares, com a retirada total dos arrozeiros.

Já o Lula 3, numa ousadia sem precedentes, criou o Ministério dos Povos Indígenas, e permitiu que todos os postos importantes, incluindo a Funai, fossem ocupados por lideranças indígenas autênticas, mas parou diante das ameaças da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), a maior força do Congresso, formada por mais de dois terços dos votos.

“O governo Lula flerta com os riscos sem perceber o perigo que corre.”
José Medeiros, deputado bolsonarista do PL/MT

Dirigente do Movimento Popular Socialistas do PSB (MPS), um dos poucos na esquerda que ainda tem capacidade de mobilização, o advogado e militante Acilino Ribeiro afirma que está com Lula para o que der e vier, mas é crítico da guinada ideológica. Ele usa a régua para avaliar o rumo do governo. “Numa escala de zero a 100, o governo está hoje 60% na direita. Lula está sendo obrigado a usar duas ‘tornozeleiras’, uma imposta pelo Banco Central e a outra pelo Congresso, do qual se tornou refém”, cutuca.

Os movimentos de esquerda acham que Lula está cedendo demais e, mesmo diante de uma realidade que estava clara no fechamento das urnas, em 2022, deixou na máquina pública remanescentes do governo anterior e permitiu que o conservadorismo de sua própria base impusesse a pauta de costumes.

“Não deixaremos de apoiá-lo, mas Lula terá de reconstruir a base mobilizando prefeitos, movimentos sociais, parceiros conservadores sinceros e com a esquerda nas ruas, como antigamente. Falta um articulador com habilidade. Não é o governo que queríamos, mas vamos com ele e não deixaremos que a direita force a barra para derrubá-lo”, afirma Ribeiro.

Não há sinais de que a fragilidade do governo Lula signifique algum risco de governabilidade, mas nunca é demais lembrar que as conspirações que têm resultado na queda de governos nascem e terminam no Parlamento. E a direita está atenta.

“Esse governo colocou no piloto automático a relação com o Congresso e virou um barco à deriva, que vai e volta ao sabor dos ventos. Lula não terá sempre o apoio do STF. Nós aprendemos e unificamos as frentes que obrigam esse governo a ir para a direita”, diz o deputado José Medeiros (PL-MT), aliado de Bolsonaro. “O governo Lula flerta com os riscos sem perceber o perigo que corre.”