Este material é complemento da matéria “Vidas destruídas pela Justiça“, produzida pela repórter Fabíola Perez e publicada na edição #2445, de 19 de outubro, da Revista ISTOÉ.

Tiarles Panyágua Borges: O mesmo nome de um traficante

Por Fabíola Perez

Em agosto de 2013, uma investigação policial em Canoas, no Rio Grande do Sul, que tinha como objetivo desmantelar uma quadrilha prendeu Tiarles Panyágua Borges. As conversas gravadas em interceptações telefônicas levaram a polícia até o suposto segurança de um esquema de tráfico de drogas. No entanto, as bases para o pedido de prisão de Tiarles foram apenas informações concedidas por informantes da polícia e da brigada militar. Uma sequência de fatos revela, porém, que a polícia errou ao apontar Tiarles como integrante da quadrilha procurada. “Ele vive no mesmo bairro que o grupo atua, porém desde o início das investigações afirma não ser dono da voz que aparece nas escutas”, afirma Márcia Helena Cunha de Sá, defensora pública que acompanha o caso. Tiarles teve de percorrer o caminho inverso e ir atrás de provar sua inocência à Justiça. “Ele entregou uma cópia de seu cartão de ponto na empresa que atuava, validado com a digital”, diz ela. Tiarles era operador de máquinas em uma indústria de molas e trabalhava utilizando as duas mãos, por isso, segundo a advogada, não poderia ficar 30 minutos ao telefone, como sugeriam as interceptações da polícia. Sem antecedentes, réu primário e com casa própria, Tiarles ficou preso por um ano e três meses no Presídio Central de Porto Alegre. Em uma das audiências, um dos setes outros suspeitos de integrar a mesma quadrilha afirmou em juízo “pegaram o cara errado.” “Tenho certeza de que a polícia se perdeu no que fez e envolveu um cara inocente que está preso até agora”, afirmou um dos suspeitos. Após um ano e três meses, uma nova juíza analisou o caso e concedeu liberdade provisória. Tiarles procurou o Instituto Geral de Perícia do Rio Grande do Sul para fazer uma análise de sua voz e confrontar com a dos traficantes identificados na interceptação. “O exame reconheceu a incompatibilidade das vozes”, diz a defensora. Hoje, depois de tentar provar sua inocência inúmeras vezes, Tiarles ainda espera a sentença final do juiz.

Gabriel Afonso de Araújo: identidade usada por criminosos

Por Fabíola Perez

O mestre de obras Gabriel Afonso de Araújo, de 38 anos, embarga a voz toda vez que se lembra dos 21 dias em que ficou confinado em uma cela de 15 metros quadrados, com 29 presos, na Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia, em Goiás. “Estou traumatizado, passei pelos dias mais tristes da minha vida”, diz. O detalhe é que Gabriel era inocente e foi preso por engano. Desde a quinta-feira 6, quando reconquistou sua liberdade, ele sai às ruas com dois alvarás de soltura. Para tentar reconstruir sua vida, pretende entrar com um recurso na Justiça que altera seu sobrenome, já que ter perdido os documentos há mais de 15 anos foi o principal motivo que o levou a ser confundido com um criminoso procurado pela polícia de Minas Gerais. “Eu pedia a Deus a morte, falava que era inocente, mas ninguém acreditava”, afirma ele. “Não foi feita a identificação criminal da pessoa que cometeu os crimes. Gabriel foi preso porque um criminoso usou seus documentos para praticar delitos em Belo Horizonte”, diz o advogado Luiz Beltrão De Marchi.

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Gabriel Afonso de Araújo, de 38 anos: 21 dias presos por engano

André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso: acusado de estupro

Por Fabíola Perez

Manhã de domingo do dia 20 de outubro de 2013. Essa data não será facilmente esquecida pelo dentista André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso, de 29 anos. Ele estava dormindo na casa da noiva, quando recebeu uma ligação da delegacia da mulher. Sem muito tempo para entender o que havia ocorrido, André foi levado imediatamente à delegacia. “Eles me pediram para confessar o crime, caso contrário os outros presos me matariam na cadeia”, diz. “Pensei que fosse um engano e que logo tudo seria resolvido.” André foi acusado de ser o autor de seis estupros e um roubo. A polícia chegou até ele baseada no depoimento de uma das vítimas que informou a placa do carro do jovem. A informação havia sido concedida, porém, dois anos após a denúncia do estupro. “Eu dizia que não era eu quem tinha cometido o crime.” Cardoso passou seis meses e 26 dias nos presídios Patrícia Acioli, Bangu 8 e Thiago Teles, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Na cadeia, foi agredido por um agente se segurança. “Quando estava algemado, eles me batiam na cara, davam chutes e me chamavam de safado”, lembra. No dia do reconhecimento do suspeito, as cinco vítimas apontaram Cardoso como autor dos crimes. “Tudo leva a crer que foi os policiais induziram os relatos porque queriam prender alguém.” Enquanto estava detido, Cardoso e o advogado pediram um exame de DNA completo e assim que chegaram os resultados, pediram para confrontar com o exame do agressor. Com os dois exames e a perícia do carro, Cardoso foi inocentado. Apesar do estigma social marcante para quem enfrentar a detenção, o dentista conseguiu reconstruir sua vida e hoje trabalha em dois consultórios. “Aprendi a ter fé, sai dessa história mais fortalecido.”

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André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso, de 29 anos: preso seis meses e 26 dias por estupros que não cometeu

Daniele Toledo: monstro da mamadeira?

Por Fabíola Perez

Um dos casos mais emblemáticos de falhas da Justiça ocorreu com a dona de casa Daniele Toledo, hoje com 31 anos. Em junho desse ano, ela foi inocentada pelo assassinato da filha, Victória, após passar 37 dias na prisão, onde foi torturada e espancada até perder a audição e a visão direita. O bebê de um ano e três meses sofria convulsões e tinha uma rotina médica intensa. No dia 28 de outubro de 2006, em uma dessas crises, Victoria foi levada ao Pronto Socorro de Taubaté, em São Paulo. “As enfermeiras identificaram uma secreção na língua dela e minutos depois ela teve três paradas cardiorrespiratórias”, diz Daniele. “Foi quando a médica me acusou de tê-la matado de overdose de cocaína.” Nervosa e sem perceber a presença de membros da polícia e do Conselho Tutelas, Daniele foi levada para a delegacia. “O delegado falava para eu confessar logo o crime, me xingou de vagabunda e filha da puta.” À época, um teste preliminar foi realizado na mamadeira e identificou um dos derivados de cocaína. E 2008, descobriu-se por meio de um exame de DNA completo que a sustância encontrada era, na verdade, um dos compostos da medicação que Victória fazia uso. Na prisão, ao invés de ficar em um espaço isolado – como prevê a lei para autores de crimes como o que ela estava sendo acusada –, a jovem teve de dividir a cela com 20 mulheres. Foi quando começou a tortura. “Entrei em coma e tive traumatismo craniano.” Apesar de ter sido inocentada, hoje Daniele faz uso de antidepressivos e ansiolíticos, tem síndrome do pânico, perdeu o emprego e não gosta de sair às ruas. Somente no ano passado, nove anos após a prisão, ela começou a participar de audiências para identificar as colegas de cela que a espancaram. “Perdi tudo por conta de um julgamento precipitado.” Daniela lançou em junho o livro “Tristeza em Pó” para relatar sua história. “Foi o único jeito de exorcizar tudo que passei.”

TRAUMA: Daniele Toledo, 31 anos, foi acusada injustamente de assassinar sua filha de um ano e acabou torturada na prisão
TRAUMA: Daniele Toledo, 31 anos, foi acusada injustamente de assassinar sua filha de um ano e acabou torturada na prisão