A família real britânica não tem bom histórico ao se deparar com más notícias. Em 1951, quando o rei George VI passou por cirurgia pulmonar, o Palácio de Buckingham escondeu o diagnóstico de câncer tanto do público quanto do próprio monarca, que faleceu cinco meses depois. Quando em 1992 sua filha e sucessora, Elizabeth II, soube que três de seus quatro filhos (príncipe Charles, príncipe Andrew e princesa Anne) estavam em processo de separação e o Castelo de Windsor foi tomado por incêndio, ela batizou aquele período de “annus horribilis” e disse apenas que não lembraria dele com saudade. Cinco anos depois, a princesa Diana faleceu, a rainha manteve o silêncio por dias e resistiu a declarar luto oficial para uma das figuras mais populares da nobreza. Mas 2024 teve em seu primeiro trimestre uma sequência de péssimas novidades para a realeza e obrigou a comunicação da aristocracia a se virar para trabalhar uma cirurgia delicada e dois casos de câncer, um no trono e outro na primeira linha de sucessão.

O período obscuro da nobre família britânica começou junto à pandemia.
Em janeiro de 2020, o príncipe Harry e sua mulher, Meghan, após reunião com seu pai, Charles, seu irmão, príncipe William, e com a rainha Elizabeth, anunciaram pelo Instagram que haviam recuado “como membros ‘sêniores’ da família real britânica”, que iriam “dividir o tempo entre o Reino Unido e a América do Norte” e tornarem-se financeiramente independentes.
A abdicação foi apelidada de “Megxit”, mistura das palavras “Meghan” e “exit”, em referência ao termo “Brexit”.
No ano seguinte, o príncipe Phillip, Duque de Edimburgo e marido da rainha, morreu aos 99 anos.
Em 2022, após 70 anos do maior reinado na história britânica, Elizabeth II faleceu.

“A monarquia dinástica é um sistema de governo caracterizado pela estabilidade e previsibilidade. Por mais que as notícias não sejam simples de digerir, o espanto e a comoção iniciais se transformam ao longo do tempo em empatia coletiva, já que a família real é a representação máxima de todas as famílias do Reino Unido”, afirma o pesquisador da realeza britânica Renato de Almeida e Silva.

Rei Charles e a esposa, Camilla, deixam a clínica onde ele trata um câncer descoberto (Crédito:Chris Jackson)

A coroação de Charles e Camilla há menos de um ano pareceu estancar o sangramento azul, mas logo na virada do ano a princesa de Gales, Kate Middleton, e o agora rei se internaram no luxuoso London Clinic, na capital inglesa. Ela passou por cirurgia abdominal e ele por intervenção na próstata.

Em meados de fevereiro, o Palácio de Buckingham anunciou a descoberta de um câncer no monarca durante o processo cirúrgico — a única informação que deram foi a de que não era no órgão onde ocorreu a operação.
E no dia 22 de março, a princesa optou por ela mesma dar a notícia em vídeo pela Internet: “A cirurgia foi bem-sucedida, mas testes depois da operação descobriram que havia câncer. Meu time médico recomendou que eu passasse por sessões de quimioterapia preventiva, e, agora, estou nos estágios iniciais desse tratamento. (…) Isto, claro, foi um grande choque, e William e eu temos feito tudo o que podemos para processar e lidar com isso de forma privada pela nossa jovem família”.

O casal Harry e Meghan (acima) abriram mão da realeza e revelaram intimidades da família real que incomodaram o príncipe William (abaixo, com dois dos três filhos) (Crédito:Divulgação )
(Yui Mok)

“É um processo de humanização de personagens que antes eram figuras idealizadas, distantes e mantidas como alvo de deferência, não de identificação com os mortais. Depois da superexposição das famílias reais, qualquer fato envolvendo suas vidas privadas é notícia. Estão pagando o preço pela sobrevivência de instituição um tanto obsoleta, a monarquia. Já não se casam entre si, choram em público, tornaram-se espontâneos. Concorrem com influenciadores. Agora, ficam doentes em público, porque não podem mais separar a vida privada da pública”, opina o historiador Francisco Vieira, especialista em monarquias européias.

Sumiço da Princesa

Durante o período em que ficou em reclusão após o procedimento, houve muita especulação pelo sumiço da princesa. Ela afirmou que usou o tempo para preparar os três filhos — George, Charlotte e Louis — à notícia do diagnóstico e tratamento. As crianças, de 10, 8 e 5 anos, estavam cientes da doença, mas os pais só a revelaram quando as escolas entraram em recesso pelo feriado de Páscoa.

As especulações durante esse período de recuperação não cessaram, e só pioraram quando a princesa postou no domingo, 10 de março, imagem manipulada cercada pelos filhos. “Como muitos fotógrafos amadores, eu experimento editar as fotos de vez em quando. Queria expressar minhas desculpas por qualquer confusão que a foto de família que compartilhamos causou. Espero que todo mundo tenha passado um feliz Dia das Mães (que no Reino Unido se celebra naquela data)”, afirmou Kate, em comunicado.

“Nos dois cenários, Kate e Charles, tudo o que falarmos é baseado em suposições, dado que não sabemos nem diagnóstico nem estágio em que as doenças foram identificadas. No entanto, para a princesa, podemos entender que se trata de tumor no abdômen e para o qual se faz quimioterapia após a cirurgia. O câncer de intestino é a neoplasia mais frequente na região”, diz a oncologista Maria Ignez Braghiroli, especialista em tumores do trato digestivo.

(Divulgação)

“Não foram poucos os casos nas famílias reais guardados a sete chaves, longe das cortes e depois do grande público.”
Francisco Vieira, historiador e especialista em realezas europeias

Saquinho de pão

Uma semana depois, o tablóide The Sun publicou vídeo em que a princesa é registrada junto ao marido carregando um saquinho de pão. A resposta do Palácio de Kensington, onde o casal vive, é que se tratava de “momento familiar privado” Mas com a repercussão do anúncio do tratamento da doença do rei encoberto pela sua reclusão, o vídeo em que Kate revela o câncer de certo modo lhe trouxe mais privacidade.

“Quando as notícias foram dadas, achei que queriam foco maior no rei. Assim, desviaria a atenção do caso da princesa. De qualquer forma, a intenção é reforçar essa humanidade naqueles que vivem no melhor dos mundos. Afinal, tudo é motivo para que a identificação dos súditos com membros da realeza seja mantida. Se antes era o vestido comprado em loja de departamento, agora é uma doença que atinge milhões. Há uma igualização na dor”, diz Vieira.

Os dois casos trouxeram consequências dúbias sobre possível reunificação da família real. Após a divulgação da doença do pai, o príncipe Harry foi visitá-lo em Londres, fez um discurso apaixonado que encheu os jornais ingleses de linhas sobre a possível “cura da ruptura familiar”. “Eu amo minha família. Entrei em um avião e fui vê-lo (o pai) assim que pude. Acho que qualquer doença, qualquer enfermidade, une as famílias”, disse Harry em entrevista ao Good Morning America, programa televisivo da ABC.

Compartilhamento e acolhimento familiares foram outros quando a cunhada anunciou a doençaHarry soube ao mesmo tempo que o universo plebeu. “Situações de doenças graves costumam reaproximar famílias. Isso não significa que as pesadas revelações feitas por Harry e sua esposa na mídia tenham sido amenizadas por alguns integrantes da família real, entre elas o próprio irmão, William”, diz Almeida e Silva.

“De todas as realezas, e são 10 sobreviventes hoje na Europa, a do Reino Unido é a que sempre esteve mais à beira do palco, sempre rendeu matéria. E ela sobrevive. O rei Faruk I, deposto do Egito em 1952, disse um dia que só haveria cinco reis no mundo, os quatro do baralho e o da Inglaterra. Talvez soubesse o que dizia. Mas a monarquia tem a capacidade de se reinventar. Este será mais um capítulo numa minissérie a que o mundo assiste ávido para a próxima trama. Os roteiristas têm pouco trabalho. A vida deles precede a ficção”, conclui Vieira.

Príncipe Philip e a rainha Elizabeth II, falecidos em 2021 e 2022, respectivamente, deram espaço para que Charles fosse coroado (Crédito:Adrian Dennis)