Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, Kostiantyn Honcharov foi lutar por seu país. Ele conta suas experiências: o gosto da guerra, exaustão, determinação – e esperança.O ucraniano Kostiantyn Honcharov trabalhou até 2022 como jornalista da DW na Alemanha. Com o início da invasão russa em grande escala, em 24 de fevereiro, ele retornou a seu país e, assim como muitos outros seus compatriotas, alistou-se voluntariamente para lutar no Exército da Ucrânia.
A seguir, o balanço subjetivo de um conflito em transformação constante.
O som e o gosto da guerra
Nem sanções internacionais, nem eloquentes ameaças políticas conseguiram dar um fim à agressão da Rússia contra a Ucrânia. Vladimir Putin tampouco se deixou deter pelas próprias perdas no campo de batalha. Pelo contrário: cada derrota faz a Federação Russa procurar novas possibilidades, em vez de desistir da guerra.
Em quase três anos, eu vi como o Exército russo muda, como o campo de batalha se transforma, como as nossas forças de defesa se adaptam à guerra – semelhante a um organismo vivo que foi parar num meio ambiente hostil.
O exército ucraniano aprendeu não só a sobreviver nesse meio ambiente, mas também a modificá-lo em vantagem própria, com ajuda das invenções mais modernas. No entanto, nenhuma tecnologia é capaz de substituir o mais importante nesta guerra: o soldado raso que, apesar da exaustão, da dor e do medo, continua do lado da pátria.
A primeira mobilização para o front a gente não esquece: o chão treme sob os pés, explosões rasgam o ar, casas em chamas crepitam, ouve-se o silvo penetrante dos estilhaços de granadas e gritos ao longe. Nesse momento, eu vivenciei pela primeira vez a verdadeira guerra, seu caos e sua implacabilidade.
Eu me lembro das primeiras salvas de tiros – breves, espasmódicas, como golpes contínuos contra a própria realidade – perfurando os ramos das árvores e se chocando contra metal. O cheiro de queimado e de pólvora enchia os pulmões, se fazia sentir até na língua – acre, sulfuroso, como dezenas de fogos de artifício explodindo ao mesmo tempo. Mas aqui não se estava celebrando nada: era a amarga realidade da guerra.
Uma era de guerra eletrônica
Minha trajetória no Exército começou no pelotão de reconhecimento da brigada aérea que libertou as regiões de Kherson e Mykolaiv, e lutou em Donetsk e Zaporíjia. Primeiro combatemos por cada posição, depois por cada rua e ruína das cidades destruídas pelos duelos de artilharia e bombas aéreas.
Após um ferimento e meses de reabilitação, fui transferido para a unidade de reconhecimento radioeletrônico. Agora minhas armas não são metralhadoras, mas sim informações: através da análise de sinais de rádio, nós seguimos os movimentos e pontos de controle hostis, drones e recursos de guerra eletrônica inimigos.
Não foi só o meu papel na guerra que mudou, mas também a guerra em si: há um novo fator decisivo no campo de batalha. No início da invasão russa, drones equipados com câmeras, controlados a partir das imagens transmitidas, eram como uma improvisação forçada, um esforço desesperado de compensar a falta de munição. Hoje, eles são armas de pleno direito e altamente precisas. Trincheiras, abrigos, tanques, tudo vira alvo numa espécie de competição entre os pilotos: quem vai descobrir, alcançar e aniquilar primeiro o inimigo?
O desenvolvimento dos drones criou um novo desafio: combatê-los. A guerra eletrônica – ou seja, o bloqueio dos sinais de rádio inimigos – avança em velocidade espantosa, obrigando os pilotos dos drones a trocarem diariamente as frequências de transmissão, aprimorar os algoritmos de comunicação e inventar novos métodos de pilotagem. Nenhuma vantagem é duradoura, é preciso os programadores e engenheiros trabalharem duro, sem cessar.
O elemento humano
Entretanto todos esses avanços tecnológicos não conseguem o mais importante: restabelecer as forças dos que estão no front sob tensão constante. Após três anos de guerra, a rotatividade nas unidades de infantaria se transformou num problema crítico para o Exército ucraniano.
Soldados exaustos, há semanas ou mesmo meses na frente avançada de batalha, esperando quem vá rendê-los, perdem prontidão e moral de combate. A insônia turva a percepção, a falta de alimento e água enfraquece o corpo. Nesses momentos, a gente não pensa nem analisa mais, só funciona, reage aos perigos e obedece ordens.
Os soldados lutam meses a fio sem ter oportunidade de voltar à vida normal sequer por alguns dias. Uma pausa breve já permitiria retornar ao serviço com mais resistência. Porém no momento cada unidade pronta para o combate vale ouro.
Em grande parte do front, as forças da Ucrânia estão encarregadas da defesa estratégica, portanto o comando simplesmente não tem o direito de retirar parte das tropas para descansarem: em seu lugar se abriria uma lacuna de que o inimigo tentaria imediatamente se aproveitar. Enquanto a guerra durar, os soldados mantêm suas posições, com esforços sobre-humanos.
Paradoxalmente, a guerra se faz sentir ainda mais forte nas cidades relativamente pacíficas do interior. Tresnoitados devido aos alarmes aéreos constantes, os moradores se arrastam pelo dia a dia, como se estivessem na expectativa de alguma tragédia que não serão capazes de evitar.
No front é mais fácil, tudo é mais claro: existe uma ordem, uma tarefa e um inimigo. O mais importante é ser eficaz, pois disso depende não só a própria sobrevivência, mas também a rapidez com que a gente se aproxima de uma vitória.
Defesa da identidade e do direito de viver livre
A guerra me transformou. Algo que era abstrato ou incompreensível tornou-se uma tarefa diária – em cuja brutal realidade, apesar de tudo, há lugar para pequenas alegrias: uma xícara de chá ao fim de um dia cansativo; a possibilidade de se lavar; algumas horas de silêncio sem explosões. Uma alegria verdadeira é ver os drones frustrarem os ataques contra nossas posições.
É claro que eu gostaria de voltar para a minha família, para uma vida em paz e minhas ocupações preferidas, preferiria nunca mais ter que pegar numa pá, morrer de frio em trincheiras úmidas, comer macarrão instantâneo ou ter que sonhar com água quente, um banheiro e roupa limpa. Todos nós estamos cansados, mas não podemos desistir agora. Não temos alternativa senão seguir lutando – não só para nós mesmos, mas também pelos mortos da guerra e por quem está nos esperando em casa. Pelo direito de viver livre.
Não acredito numa paz rápida, pois não vejo, entre as partes, pontos de contato para um consenso. Por que o agressor encerraria guerra se, seguindo com sua "ofensiva furtiva", ele ocupa cada vez mais regiões da Ucrânia? A Rússia não vai recuar por si mesma, ela só pode ser contida através de uma resistência organizada. Só onde infantaria e drones, tecnologia e um espírito de combate irresistível trabalharem em conjunto, o inimigo não terá chance de continuar avançando.
Ao mesmo tempo, cada atraso na disponibilização da ajuda internacional dá ao inimigo a chance de fortalecer suas posições. Isso é óbvio para todo mundo que está no front. Mas a nossa luta vai continuar, apesar de todas as mudanças políticas e das hesitações dos nossos parceiros internacionais.
Mesmo que agora alguns políticos internacionais de ponta estejam desviando do inimigo para nós a culpa pela deflagração da guerra, nossa resistência não cederá. No fim das contas, estamos defendendo não só o nosso território, mas também a nossa identidade e o nosso direito ao futuro.