Como surgiram as tornozeleiras eletrônicas

Como surgiram as tornozeleiras eletrônicas

"AEquipamento violado por Bolsonaro surgiu nos anos 1960, inicialmente como parte de experimento comportamental. Nos anos 1980, ganhou espaço no Judiciário dos EUA pelas mãos de juiz que se inspirou em HQ do Homem-Aranha.As circunstâncias que levaram à prisão preventiva de Jair Bolsonaro no último sábado (22/11) lançaram luz sobre um adereço que nos últimos 15 anos que se tornou uma peça-chave no Judiciário brasileiro e involuntariamente de parte da política.

Em detenção domiciliar desde agosto e condenado a mais de 27 anos de prisão por liderar uma trama golpista, o ex-presidente acabou tendo a prisão preventiva decretada no fim de semana após uma violar com um ferro de solda a tornozeleira eletrônica que vem usando nos últimos quatro meses.

O vídeo em que a diretora-adjunta da Secretaria de Administração Penitenciária do DF examina o aparelho todo derretido e conversa com o "Seu Jair”, como ela chama o ex-presidente, viralizou em poucas horas.

Presa ao corpo de Bolsonaro como medida cautelar, o equipamento monitora a movimentação e comportamento de suspeitos e criminosos condenados.

A tornozeleira eletrônica também vem sendo presença recorrente no noticiário brasileiro ao longo da última década, com vários representantes da classe política obrigados pela Justiça a exibir (ou esconder) o aparelho atrelado às canelas.

Bolsonaro também não é o único ex-presidente a usar o equipamento. Em Alagoas o ex-presidente Fernando Collor, condenado por corrupção, vem cumprindo sua pena em prisão domiciliar acompanhando pelo equipamento.

Psicologia, Homem-Aranha: as origens do monitoramento eletrônico

Geralmente associada ao juiz norte-americano Jack Love, na verdade a criação do conceito de monitoramento remoto (que redundaria na invenção da tornozeleira eletrônica) surgiu com os gêmeos Ralph e Robert Schwitzgebel, estudantes de psicologia da Universidade de Harvard em meados dos anos 1960.

Os acadêmicos criaram protótipos com sobras de equipamento militar e chegaram a patentear a ideia. A intenção era auxiliar no monitoramento de jovens infratores, para incentivá-los a comparecer a locais determinados no horário, em uma forma de reforço positivo. Os participantes que seguissem o programa eram recompensados.

Usando equipamentos militares antigos, eles criaram um sistema no qual os infratores usariam dispositivos de rádio que comunicavam onde estavam. Mas o projeto logo foi extinto por falta de fundos.

No final da década de 1970, entra em cena o juiz Jack Love, que encomenda o desenvolvimento um aparato eletrônico de monitoramento para aplicação de penas da justiça criminal no estado do Novo México. Love contaria à época que uma das inspirações para a criação do aparelho veio de uma das histórias em quadrinhos do Homem-Aranha em que o super-herói é obrigado por um vilão a usar um bracelete capaz de indicar sua localização em tempo real.

Satisfeito com o protótipo desenvolvido em parceria com um engenheiro, a partir de 1983 o juiz Love passa a aplicar o monitoramento remoto na sentença de condenados de baixa periculosidade em prisão domiciliar ou em liberdade condicional.

Mas a experiência foi logo abortada pelas autoridades estaduais, temerosas das implicações constitucionais que a novidade poderia acarretar, dada a inexistência de legislação sobre o tema. Apesar disso, antes do final da década a ideia passou a ser finalmente aceita pelo sistema judiciário dos EUA.

Inicialmente operados por meio de radiofrequência, a maioria dos aparelhos utilizados hoje se valem do GPS e redes de celular para seu funcionamento. No caso do condenado ultrapassar o limite geográfico determinado ou se houver tentativa de violação da tornozeleira, um sinal é emitido para uma central de monitoramento para que as medidas policiais cabíveis sejam tomadas.

Antes de definir o tornozelo como ideal para fixar o aparelho, várias alternativas foram testadas na década de 1980. Foram fabricados modelos atados ao pulso e até um para ser usado em torno do pescoço.

Devido principalmente ao baixo custo em comparação com o encarceramento, o uso da tornozeleira eletrônica disseminou-se. Hoje, mais de 30 países ao redor do globo se valem do aparelho como medida cautelar regulamentada de execução penal. Durante a pandemia de covid-19, a partir de março de 2020, houve um aumento exponencial no emprego do aparelho pela justiça, especialmente nos Estados Unidos, na tentativa de diminuir o risco de aglomerações nas prisões.

No Brasil, a implementação da tecnologia demorou um pouco. O uso do equipamento só passou a ser previsto em lei em 2010, com a sanção pelo então presidente Lula da Lei nº 12.258, que alterou a Lei de Execução Penal.

No Brasil, o uso mais comum do equipamento envolve prisão domiciliar, mas a tornozeleira também pode ser aplicada caso uma prisão não tenha vagas ou no caso de juiz determinar monitoramento durante saídas temporárias.

Entre os políticos brasileiros que já tiveram o uso do equipamento determinado pela Justiça, estão o ex-deputado federal Daniel Silveira e o ex-ministro Geddel Vieira Lima.

Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais divulgados em dezembro de 2023 havia 153.509 tornozeleiras eletrônicas no Brasil.

Questões éticas e cultura

Por outro lado, pesquisadores e associações internacionais dedicadas à defesa dos direitos humanos como a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) questionam o emprego do monitoramento remoto sob o ponto de vista ético. Este posicionamento baseia-se na rejeição de ferramentas tecnológicas vistas como uma outra forma de aprisionamento. Além disso, a estigmatização social dos usuários é citada como fonte de abalo psicológico e ansiedade para seus usuários.

Em relatório produzido em 2013, o Comitê para problemas criminais do Conselho da Europa (órgão internacional de defesa dos direitos humanos) alertou para o que enxergou como ineficiência do monitoramento eletrônico no aspecto da ressocialização posterior dos usuários da tornozeleira. O órgão também mencionou a necessidade de que a legislação de cada país defina com transparência o que será o que será feito dos dados coletados dos indivíduos durante o período de monitoramento.

São também questões que ganharam espaço na cultura.

Na primeira temporada de The Pitt, ganhadora do prêmio Emmy de melhor série dramática, em 2025, após um atentado terrorista, o hospital de Pittsburgh que serve de cenário para a série é tomado por dezenas de vítimas. Nesse momento de confusão, a tornozeleira eletrônica usada por uma das médicasacusa um mal funcionamento e começa a apitar. Para continuar atendendo no setor de emergência, ela quebra o aparelho. Logo em seguida chega uma dupla de policiais para prendê-la pela violação, sem direito a nenhuma discrição e sem espaço para explicações.

Já no recente remake da novela brasileira Vale-Tudo, o criminoso de colarinho branco Marco Aurélio (interpretado por Alexandre Nero) e sua mulher Leila (Carolina Dieckmann) terminam a novela em prisão domiciliar após o executivo fingir problemas de saúde. Monitorado e cumprindo prisão em casa, o casal coloca as tornozeleiras para carregar antes de dormir, como se manuseassem um simples celular.