Como o escândalo do mensalão impactou política e Judiciário

Como o escândalo do mensalão impactou política e Judiciário

"NosHerança do mensalão continua presente até hoje, 20 anos após denúncia do esquema, que afetou a cúpula do PT, trouxe Judiciário para os holofotes e contribuiu para clima de polarização.A República balançou naquelas primeiras horas de 6 de junho de 2005. Há exatos vinte anos, o então presidente do PTB, Roberto Jefferson, denunciava, em uma entrevista de duas páginas no jornal Folha de S.Paulo, um esquema de compra de votos de parlamentares por membros do alto escalão do governo do PT, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

Pressionado por outro escândalo, o dos Correios, que envolvia acusações de recebimento de propina na estatal pelo seu partido, Jefferson caiu atirando. Disse que Delúbio Soares, então tesoureiro do PT, arregimentara deputados da base com um pagamento mensal de R$ 30 mil em troca de aprovações de projetos de interesse do governo, por meio de desvios de verba pública por meio de agências de publicidade administradas pelo empresário Marcos Valério.

A entrevista de Roberto Jefferson aterrissou como uma bomba na Praça dos Três Poderes. As investigações levaram à denúncia de 40 figurões pela Procuradoria Geral da República (PGR) em 2006, dos quais 37 foram julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) entre agosto de 2012 e novembro de 2013 e 25 condenados, entre eles o próprio Jefferson.

Mesmo que Lula não tenha sido diretamente envolvido nas denúncias, o presidente viu aliados próximos e alguns dos principais quadros do Partido dos Trabalhadores sofrerem com o afastamento da política e eventuais prisões em decorrência do mensalão – José Dirceu (ministro-chefe da Casa Civil), José Genoíno (presidente do PT), Delúbio Soares (tesoureiro), Silvio Pereira (secretário-geral nacional do PT) e João Paulo Cunha (presidente da Câmara), por exemplo.

Além de ter mudado a dinâmica do partido, que se viu cada vez mais dependente da figura de Lula, o escândalo do mensalão ampliou a presença do Judiciário na opinião pública, com a acompanhamento em tempo real do julgamento pelos meios de comunicação, e impulsionou a polarização na política nacional, com o recrudescimento do antipetismo. De acordo com analistas consultados pela DW, as repercussões do escândalo refletem até hoje no cenário brasileiro.

Início dos problemas do PT

Segundo a cientista política Beatriz Rey, para além da questão moral relacionada aos casos de corrupção, o mensalão foi o primeiro indício das dificuldades que o partido do presidente Lula enfrenta até hoje para gerir coalizões com outras siglas em busca de governabilidade. "Ali já temos uma movimentação que vai se repetir ao longo dos anos nos governos do Lula e do PT", analisa a pós-doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP).

"Vimos essa dificuldade lá atrás e estamos vendo de novo, com coalizões heterogêneas – no governo atual, os aliados vão do PSOL até o União Brasil. É difícil atender a todos os interesses, ao mesmo tempo com o governo tentando dar muito espaço para o PT", explica Rey.

Um dos motivos para isso pode ser a própria configuração do partido que, para a analista, é o único no cenário político que segue fielmente um programa, com identificação ideológica à centro-esquerda, mesmo que isso venha mudando desde 2003, quando ocorreu a primeira eleição de Lula para a Presidência. "Por ter esse projeto político claro, é mais difícil negociar", complementa.

Para ela, o ônus com o escândalo ficou com o Partido dos Trabalhadores, que perdeu algumas das principais lideranças e tem visto Lula se isolando na tomada de decisões, cada vez com menos conselheiros pessoais.

Rey afirma que, desde então, com novas regras eleitorais como a cláusula de barreira, que gerou menor fragmentação partidária e obrigou a consolidação de federações partidárias, isso não significou a criação de partidos mais programáticos. "O que eu tenho visto são partidos se fundido e federando à direita e extrema direita, não à esquerda. Do ponto de vista de quem se importa com a democracia é muito preocupante, porque não pode haver só um campo político se organizando", diz.

Antipetismo

Do lado do centrão, Roberto Jefferson, mesmo preso, voltou ao comando do PTB em 2016, participou dos governos Temer e Bolsonaro, até ter a prisão domiciliar revogada em 2022, por um atentado a arma de fogo contra policiais federais e ofender publicamente a ministra Carmen Lúcia, do STF.

Além dele, uma das principais figuras condenadas e presas pelo mensalão foi Valdemar da Costa Neto. Ex-deputado, ele recebeu um indulto em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff. Atualmente, Costa Neto comanda o PL, partido de Jair Bolsonaro. A sigla possui a maior representatividade na Câmara, com 99 deputados federais. Em segundo lugar está a federação de PT, PV e PCdoB, com 19 cadeiras a menos.

"É difícil falar do mensalão sem falar no que veio depois", diz Beatriz Rey, citando o petrolão e a Lava Jato. "Desmoralizou toda a classe política. A eleição de Jair Bolsonaro acontece nessa esteira, mas o centrão tem uma capacidade de se refazer por não ter o apego programático. É um grupo de partidos que tem muito mais facilidade de fazer um rebranding", completa.

Lula, por sua vez, conseguiu se reeleger em 2006 e indicar a sucessora, Dilma Rousseff, que foi eleita por dois mandatos, mas sofreu impeachment em 2016. Apesar de se livrar do mensalão, o atual presidente acabou condenado e preso em 2017 pela segunda instância, acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de comandar uma organização criminosa que desviava verbas da Petrobras.

O processo, no entanto, foi anulado em 2021 pelo STF, que julgou incompetente o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada na época pelo atual senador Sergio Moro (União Brasil-PR) e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. Em 2022, Lula foi reeleito para o terceiro mandato.

Para Flávia Biroli, professora titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), o mensalão consolidou o sentimento de antipetismo, fundamental para a atual polarização política vigente no país nos últimos anos. "Toda a relação que vai se estabelecer a partir dos oponentes do PT, do PT e da corrupção, vem sendo tecida desde aquele momento", afirma Biroli.

"O PT era colocado como um partido diferente, com um enraizamento na sociedade civil como nenhum partido teve. Quando aparece envolvido em corrupção, como ‘mais do mesmo', isso modifica a percepção pública em relação à legenda. E a extrema direita cresce em torno disso", observa a cientista política. Segundo ela, isso fomenta a compreensão do eleitorado mais jovem, que não conhece a tradição anterior do PT, de que o partido é parte do establishment por ter governado durante 14 anos.

Em contrapartida, Biroli diz que o próprio Lula aprendeu com o episódio do mensalão, assumindo negociações e dando início ao que é hoje conhecido como lulismo, "uma capacidade de negociação muito grande que o presidente tem e que permite a criação de coalizões amplas que em tese aumentariam a governabilidade".

Judiciário

O mensalão também colocou no primeiro plano um dos Três Poderes que, até então, não tinha recebido tantos holofotes desde a redemocratização. No julgamento, o Judiciário, na figura do STF, foi protagonista. Os ministros, capitaneados pela figura do relator Joaquim Barbosa, travavam embates diários na TV Justiça, alimentando o interesse do público pela punição de uma classe política que, até ali, era conhecida por se safar de crimes cometidos contra o patrimônio.

O Supremo não era um ator relevante que ganhasse as manchetes, os corações e as mentes das pessoas, comenta Álvaro Palma de Jorge, professor e fundador da FGV Direito Rio. "No mensalão é que ele se apresenta como guardião da moralidade pública do país, botando pela primeira vez na cadeia membros da classe política e subindo, assim, no ranking da política", diz ele, que aponta que houve, à época, uma "tempestade perfeita" – a indignação popular com a corrupção, um caso concreto e relevante que envolve figuras do alto escalão e uma atenção específica dos meios de comunicação.

"Não tinha saída, [os ministros] tinham que votar e, na medida que isso acontecia, vinha com a carga toda. Eram percebidos como de um time ou de outro, o que aproximou o STF da mesa do bar", acrescenta o autor de Supremo Interesse: A evolução do processo de escolha dos ministros do STF.

A atuação do Judiciário seguiu fortalecida após o mensalão. Descambou na Lava Jato e no petrolão. Atualmente, o STF é uma figura ativa na República, tanto no julgamento dos atos golpista quanto em matérias que interessam diretamente o Legislativo e o Executivo, como no caso das emendas parlamentares.

De acordo com Palma de Jorge, mesmo com os problemas na operação Lava Jato, por exemplo, o Judiciário se mostrou efetivo no combate à corrupção. No entanto, ele aponta que a atribuição pela opinião pública de ministros a certa agenda política pode causar ruídos e enfraquecimento institucional. "Se a cúpula do governo diz que o mensalão não existiu, os golpistas agora dizem a mesma coisa [sobre o 8 de janeiro]. Se todo mundo joga sobre o Judiciário a pecha de estar fazendo perseguição política, isso é muito ruim para a instituição", comenta.

Ele lembra casos com o de Carla Zambelli, que alegou perseguição política depois de invadir o site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para plantar informações falsas. "Os petistas que foram pegos com troca de dinheiro usam o mesmo discurso. Se todo mundo usar contra o Judiciário o discurso de que ele está atuando politicamente na hora que pune a corrupção, o desgaste é do Judiciário. É a deslegitimação do ator. Mantém o problema e fica condenando aquele o enfrentou", finaliza.