Como o Brasil está conseguindo trazer fósseis no exterior de volta

Como o Brasil está conseguindo trazer fósseis no exterior de volta

"ParaEsforço envolve cientistas, Judiciário, diplomatas e até mesmo redes sociais. Itens são considerados patrimônio público desde 1942 e por isso não poderiam ser comercializados.A paleontóloga brasileira Taissa Rodrigues, professora na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), dedicava-se à sua principal pesquisa dos últimos 20 anos quando se deparou com anúncios suspeitos na internet. Especialista em pterossauros que viveram onde hoje é o Brasil, ela percebeu que os fósseis que estavam à venda em determinado site internacional de leilões muito provavelmente eram fruto de contrabando.

Entre os exemplares, um réptil alado da espécie Anhanguera santanae, que viveu há cerca de 110 milhões de anos e estava com lance inicial de quase R$ 1 milhão. Rodrigues apresentou uma denúncia ao Ministério Público Federal (MPF).

A questão se arrastou, entre investigações, perícias e tratativas entre autoridades. Em dezembro de 2023, nove anos depois da descoberta da professora, 998 fósseis brasileiros que estavam na França foram repatriados. Oriundas da bacia que corta a Chapada do Araripe, no Ceará, as peças foram incorporadas ao acervo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri, na mesma região. São fósseis de pterossauros, peixes, plantas, insetos e outras espécies que viveram há mais de 90 milhões de anos.

O Anhanguera e outros 45 fósseis, contudo, ainda não têm o veredito para retornarem ao Brasil. Em 2019, a Justiça francesa entendeu que cabe a repatriação. Contudo, a empresa que tentava comercializar esse conjunto de fósseis entrou com recurso e o caso ainda não foi concluído.

"Muitos fósseis do Araripe estão em coleções particulares do mundo todo. Isso é um problema muito bem conhecido", diz a cientista.

O caso do Anhanguera não é isolado, mas não se sabe ao certo quantos fósseis foram retirados do país. Especialistas argumentam que isso é algo difícil de quantificar.

Raridade e cobiça

Fósseis foram declarados patrimônio da União num decreto-lei de 1942. São, portanto, patrimônio público, do povo brasileiro e por isso, segundo especialistas, não podem ser vendidos. "Assim, há mais de 80 anos, qualquer fóssil brasileiro só pode ser extraído, guardado, transportado e exportado com autorização expressa do governo federal", esclarece o procurador da República Rafael Rayol, que atua desde 2009 no MPF pela repatriação de fósseis do Ceará e já conseguiu trazer de volta milhares deles, tanto da Europa quanto da América do Norte.

Rayol diz que o caso dos 998 fósseis foi o mais emblemático no qual ele trabalhou. "Eles foram contrabandeados dentro de um carregamento de quartzo com destino à França e a carga, adquirida por uma empresa francesa especializada na comercialização de fósseis", conta ele, lembrando que foram vários anos de discussão na Justiça francesa e reuniões com autoridades.

Segundo a Agência Nacional de Mineração, autarquia federal que faz a gestão os recursos minerais brasileiros, há 39 sítios paleontológicos no país. O levantamento é feito por uma comissão, fundamentado por artigos científicos elaborados por especialistas, e pode ser consultado aqui.

De acordo com Rodrigues, os fósseis do Ceará são os mais cobiçados no mercado internacional. "Existem muitas outras regiões no Brasil com fósseis. Essencialmente, o país quase todo é muito rico em fósseis. Mas existem alguns locais em que há uma convergência de fatores que contribuíram para a ilegalidade: abundância de fósseis, facilidade de coleta e transporte, e valor comercial nesse tráfico", afirma.

"Os do Araripe atingem preços maiores nesse mercado ilegal, porque são bem preservados. Alguns fósseis são de espécies mais raras… E eles são fáceis de transportar", completa.

Os cientistas argumentam que há várias razões para lutar pela repatriação dos fósseis brasileiros. Rodrigues atenta para o fato de que pesquisadores precisam ter acesso ao material para avançar nas pesquisas. "Se estão em coleções privadas, é praticamente impossível para qualquer cientista", comenta. "Se estão em instituições estrangeiras, o acesso se torna muito caro para pesquisadores brasileiros."

Ghilardi ressalta que iniciativas assim estão dentro do que se chama de "decolonialismo científico" – ou seja, uma reparação histórica, sob o debate internacional acerca da manutenção, em coleções estrangeiras, de artefatos levados de outros países em circunstâncias moral ou eticamente questionáveis. Um marco dessa luta ocorreu no ano passado, quando um museu dinamarquês devolveu ao Brasil um manto tupinambá do século 17 que estava lá há 300 anos.

Movimento por repatriação ganhou força com redes sociais

Repatriar fósseis exige uma articulação entre cientistas e autoridades. Mas, em tempos de redes sociais, um empurrãozinho da opinião pública também parece ajudar. Foi o que aconteceu com um fóssil que até ganhou apelido: Bira.

Trata-se de um exemplar de Ubirajara jubatus, fóssil descoberto no Brasil e que foi levado, em condições desconhecidas, para a Alemanha no início dos anos 1990. Estava no Museu de História Natural de Karlsruhe. Em 2020, a paleontóloga Aline Ghilardi, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), encabeçou uma campanha para trazê-lo de volta.

"Além de professora e pesquisadora, eu trabalho há 15 anos com divulgação científica nas redes, por meio de um blog, um canal no YouTube, minhas redes pessoais, etc.", conta ela.

A mobilização transcendeu o meio acadêmico e acabou pressionando o Ministério da Ciência, Pesquisa e Artes do estado de Baden-Württemberg. Depois de uma longa queda de braço, em 2023, o fóssil retornou ao Brasil.

Ghilardi explica que fósseis como esse são importantes porque, além de raro, é um holótipo — ou seja, o exemplar definido como o primeiro para a descrição de uma nova espécie.

"Tenho me envolvido em ações para o levantamento de fósseis holótipos brasileiros que estão fora do Brasil e trabalhado para sua repatriação de diferentes maneiras", conta Ghilardi. Ela integra um grupo, chamado de Observatório de Repatriações, que une pesquisadores de diversas instituições. "A repatriação do Ubirajara foi um marco importante sob diferentes pontos de vista. A campanha teve forte contribuição para o seu retorno, mas principalmente para a popularização do tema e sensibilização da população e de autoridades com poder para tomadas de decisão", avalia a cientista.

Brasil tenta repatriar outro fóssil na Alemanha

Agora Ghilardi busca repatriar outro holótipo que também está em museu público do mesmo estado alemão: o crânio do Irritator challengeri, considerado o mais completo e preservado dos dinossauros de seu tipo, está no Museu de História Natural de Stuttgart — ele foi incorporado ao acervo da instituição em 1991, depois de ter sido adquirido de um comerciante de fósseis. O museu também fica sob a jurisdição do mesmo Ministério da Ciência de Baden-Württemberg.

Em nota, a pasta estadual afirmou à DW que está "ciente das iniciativas para repatriar o Irritator challengeri" e que já trocou "informações com as autoridades brasileiras competentes". "Gostaríamos de continuar esse diálogo", enfatizou.

O ministério confirmou que o exemplar consta da coleção do museu de Stuttgart desde agosto de 1991, com "diversa correspondência com o comerciante responsável" preservada, datada do primeiro semestre daquele ano. Por conta disso, o órgão reitera que o fóssil foi exportado do Brasil pelo menos 15 anos antes da data relevante para uma instituição alemã, no caso a Lei Alemã de Proteção de Bens Culturais, de 26 de abril de 2007. "De modo que, segundo a legislação alemã, o Brasil não teria direito a reivindicar sua restituição", argumenta.

De qualquer forma, o ministério salienta que há desejo de aumentar o "intercâmbio científico" e a "cooperação" com o Brasil, e que o desejo das repatriações de holótipos é recebido "com grande compreensão" pelas instituições alemãs. "Como uma devolução envolve questões de importância fundamental, é necessário encontrar um caminho juridicamente seguro. E a definição desse assunto ainda demandará algum tempo", salienta.

Trabalho que requer diplomacia

Uma vez descoberto o paradeiro de um fóssil contrabandeado e encaminhada a denúncia ao Ministério Público, o processo de repatriação costuma contar com a diplomacia. De acordo informações da Embaixada do Brasil em Roma, de um ano para cá cinco casos do tipo na Itália estão em tramitação.

Quanto aos concluídos, os mais relevantes dos últimos anos que passaram pela representação diplomática foram os dos peixes Rhacolepsis buccalis, devolvido em 2023, e, neste ano, o do peixe Vinctifer comptoni, de 145 milhões de anos — ambos originários do Araripe.

O Vinctifer estava à venda em uma loja de antiguidades da região de Udine, no nordeste italiano. Na vitrine, chamou a atenção da polícia italiana, que decidiu averiguar. A embaixada foi contatada e acionou pesquisadores brasileiros para atestarem que, sim, se tratava de um item importante. O fóssil estava dividido em duas metades e era oferecido por pouco mais de 2 mil euros.

Quando autoridades diplomáticas precisam desses laudos, em geral recorrem à Sociedade Brasileira de Paleontologia. Na maioria das vezes, as análises são feitas a partir de imagens. "As instituições têm trabalhado em conjunto e isso tem rendido bons frutos. Estamos nos tornando cada vez mais referência no processo que visa a combater o tráfico ilegal de fósseis", afirma o presidente da entidade, o paleontólogo Hermínio Ismael de Araújo Júnior.

Para o embaixador do Brasil na Itália, Renato Mosca de Souza, esse trabalho de repatriação é fundamental. Ele argumenta que "a restituição de fósseis brasileiros […] não apenas possibilita a realização de novas pesquisas paleontológicas em solo brasileiro, mas também democratiza o acesso ao conhecimento por meio de divulgação científica e de exposições".

Museu Nacional

Mas há também casos de devoluções espontâneas. Em maio do ano passado, o Museu Nacional — que passa por um processo de reconstituição do acervo depois do incêndio de 2018 — ganhou 1.104 fósseis que pertenciam à família do colecionador suíço-alemão Burkhard Pohl, dono de um dos maiores acervos privados de minerais do planeta. Todos os itens são originários da Bacia do Araripe.