O objetivo deste texto é falar sobre a reforma eleitoral escabrosa aprovada em primeira votação pela Câmara dos Deputados, meio na surdina, na noite desta quarta-feira. Já chego lá. Primeiro vou falar da Lava Jato.

Eu estou entre aqueles que acham que a operação, como tudo na vida, exceto talvez o chocolate meio amargo, não foi nem inteiramente boa, nem inteiramente ruim.

Há um mérito que não lhe pode ser jamais negado: ela desvendou um esquema gigantesco de corrupção política, no qual o PT tinha papel de destaque, mas que tocou toda uma geração de políticos, nos mais variados partidos. É bom lembrar também que a Lava Jato não tinha nada a ver com política quando começou. Ela não foi um complô para atingir esse ou aquele chefão. Ela só chegou aonde chegou porque começou a investigar a doação de um Land Rover feita por um doleiro a um diretor da Petrobras.

A meu ver, a Lava Jato cometeu erros jurídicos. O mais grave foi condenar Lula no processo do tríplex do Guarujá. Quero dizer com isso apenas uma coisa: o processo estava mal instruído. As provas não eram firmes o bastante para garantir uma condenação. Isso não equivale a exonerar Lula de responsabilidade no petrolão. Ele disse certa vez que esperava que o PT ficasse 20 anos no poder. Suspeito que desejava mais tempo ainda, e por isso deu a bênção para que se formasse aquele mega-esquema de compra de apoio político com recursos da Petrobras. Na política brasileira deste começo de século, ele merece o título de Grande Corruptor.

Os protagonistas da Lava Jato cometeram um segundo erro, ainda maior: contribuíram com a ideia de que a política é uma atividade inerentemente desonesta, e que barganha, negociação e divisão de poder são a mesma coisa que corrupção. Por causa disso, a maioria dos brasileiros foi votar com nojo em 2018. Por causa disso, um político autoritário como Jair Bolsonaro, medíocre até para os padrões do Centrão, que provavelmente embolsou dinheiro público com rachadinhas e ensinou os filhos a fazer o mesmo, conseguiu se eleger presidente – simplesmente fingindo que era um paladino da honestidade.

Essa desvalorização da política, que fez um pilantra da magnitude de Jair Bolsonaro ser visto como “alternativa”, causou um mal gigantesco ao Brasil. É preciso superá-la. É preciso restabelecer o valor da política e aceitar que ela não é uma atividade desempenhada por anjos. Ela não envolve só ideias e valores elevados, como já sabia Maquiavel, quinhentos anos atrás. Ela também é sobre poder e interesses – e está tudo ótimo, desde que feito dentro das leis e com um respeito mínimo pelo senso comum.

E agora retorno à reforma eleitoral. Ela desrespeita o senso comum e a Constituição. Depois de reservar a enormidade de 6 bilhões de reais do Orçamento para as campanhas do ano que vem, os deputados aprovaram, com um destemor invejável, para não dizer cara de pau, um  pacote de “auto-bondades” que não poderia ser mais gordo.

Repito: é indispensável restaurar a confiança na política. Mas os políticos precisam ajudar. Não há uma vírgula no projeto que contemple o interesse público. Tudo, absolutamente tudo, responde aos interesses dos próprios parlamentares.

Ah, mas eles derrubaram o tal do distritão, aquele método eleitoral que só favorece quem já é muito conhecido ou tem recursos para espalhar seu nome aos quatro ventos!

Sim, o distritão foi o boi de piranha, destroçado no debate público enquanto todo o resto passava adiante, escondido depois da curva do rio. Até mesmo as coligações partidárias, extintas há não mais que cinco anos, como meio de tentar reduzir o número de partidos políticos que sugam recursos públicos e se alugam para quem chega ao poder, foram restauradas.

Difícil apontar qual a pior das novidades. Certamente está no topo da lista a autorização para que as legendas usem o fundo partidário da forma como bem entenderem – inclusive, pagando mordomias como aluguéis e jatinhos para os seus dirigentes.

Também no topo está a determinação de que o Congresso pode derrubar decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), caso julgue que elas estão em desacordo com as leis eleitorais.

É escandaloso que uma regra claramente inconstitucional como essa tenha passado. O Congresso pode fazer leis, mas não pode interpretá-las. Essa tarefa é do Judiciário. A menos que o mundo tenha virado definitivamente de ponta cabeça, esse dispositivo não tem chance de prosperar: será derrubado pelo Supremo Tribunal Federal. Sua única utilidade terá sido a de criar um novo espaço de confronto entre os poderes.

A ideia de autorizar a publicação de pesquisas eleitorais somente até a antevéspera da votação tampouco para de pé. Ela parte do princípio que uma pesquisa pode influenciar o resultado das eleições, sobretudo se captar erradamente uma tendência. Ou seja, com base em hipóteses que podem ou não se verificar, cassa-se a liberdade de informação, institui-se a censura prévia. É outra flagrante inconstitucionalidade.

No mundo sonhado pelos parlamentares, o caixa 2 deixa de ser enquadrado criminalmente como falsidade ideológica. Os candidatos poderão apresentar prestações de contas mentirosas – a omissão de informações em documentos públicos é justamente uma das hipóteses de falsidade ideológica – e mesmo assim serão tratados como se fossem varões de Plutarco. Aliás, a análise de contas eleitorais terá de ser feita em no máximo dois anos – caso contrário, estará tudo perdoado.

Os parlamentares não querem ser punidos nem mesmo por picaretagens que parecem pertencer ao século 19, como a prática de transportar eleitores até o local das urnas em troca de voto. Isso deixa de ser crime e passa a ser “infração civil”.

É um horror. Como se trata de emendar a Constituição, uma nova votação na Câmara ainda será necessária. Depois disso, o Senado avalia a matéria, também em duas votações. Muita coisa ainda pode mudar. Mas a pergunta é inevitável: para pior?

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PS: Ao reler o texto, vi que uma coisa importante ficou no ar. Então lá vai: sim, chocolate meio amargo é inteiramente bom.