Como lidar com o aumento da obesidade no Brasil

Doença crônica já afeta um em cada quatro brasileiros. Para frear seu avanço, médicos propõem intervenções cirúrgicas e farmacólogicas mais cedo, aliadas a mudanças no estilo de vida."A obesidade é doença e a gente não tem que tratar só as complicações dela. A gente tem que, sim, escolher os tratamentos com base nas demais condições de saúde do paciente, mas ela tem que ser tratada", diz a endocrinologista Cynthia Melissa Valério, diretora da Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).

A defesa insistente de uma mudança na visão sobre a obesidade se deve, principalmente, ao aumento dos casos. Dados do painel da Obesidade do Ministério da Saúde mostram que em 2006 o país tinha 11,8% da população obesa. Em 2023, esse número saltou para 24,3%.

A faixa etária com maior prevalência de obesidade é de 45 a 54 anos, com 32,6% de homens e 27,5% de mulheres. As estatísticas do Ministério da Saúde consideram apenas pessoas acima de 18 anos.

O Atlas Mundial da Obesidade estima que, se nada mudar, quase metade da população adulta brasileira (48%) será obesa e outros 27% terão sobrepeso até 2044. O documento, editado pela Federação Mundial da Obesidade, foi lançado neste ano.

Uma pessoa é considerada obesa quando tem IMC – peso dividido pelo quadrado da altura – acima de 30; acima de 25, fala-se em sobrepeso.

Especialistas ouvidos pela DW são categóricos em dizer que as causas estão diretamente relacionadas a mudanças no estilo de vida da população.

Médica nutróloga e cofundadora da ONG Obesidade Brasil, Andrea Pereira cita o aumento no consumo de alimentos processados e ultraprocessados, diminuição do consumo alimentos frescos e in natura, como frutas e hortaliças, e redução da atividade física diária.

Ultraprocessados já respondem por 20% das calorias ingeridas

Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) que analisou dados sobre a alimentação dos brasileiros entre os anos de 2008 e 2018 constatou um aumento de 5,5% no consumo de ultraprocessados no país nesse período.

Entre 2017 e 2018, quase 20% das calorias ingeridas pelos brasileiros já vinham desses alimentos.

Segundo o levantamento, o consumo é maior entre os seguintes grupos: adolescentes, brancos, pessoas com maior renda e escolaridade, e moradores de áreas urbanas das regiões Sul e Sudeste.

Mas foi nas regiões Norte e Nordeste, entre moradores de áreas rurais e pessoas pretas e indígenas ou com até quatro anos de estudo que o consumo aumentou em ritmo mais acelerado.

Entre os motivos que justificam esse aumento estão a facilidade de consumo, o baixo custo e o fato de alguns desses produtos, como macarrão instantâneo e biscoitos, integrarem a cesta básica brasileira até o ano passado.

Em março de 2024, o governo federal publicou um decreto proibindo a inserção desse tipo de alimento na cesta básica.

Segundo o documento, a cesta precisa ser composta por alimentos in natura ou minimamente processados, além de ingredientes culinários. Excepcionalmente, a cesta pode ser complementada com os seguintes alimentos processados: pão de sal, queijos e conservas de atum, sardinha, verduras ou legumes.

Obesidade é doença crônica

O crescimento da obesidade no país nas últimas décadas e avanços farmacológicos recentes têm levado associações médicas a rever suas diretrizes de tratamento da doença.

Em junho, a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) anunciou a nova diretriz brasileira para o tratamento farmacológico da obesidade, com 35 orientações.

Uma das principais propostas é adotar metas mais realistas e clinicamente relevantes, como a perda de ao menos 10% do peso corporal, com foco na melhoria de comorbidades como diabetes tipo 2, hipertensão, apneia do sono e doença hepática associada à disfunção metabólica.

As abordagens anteriores miravam a redução do IMC (Índice de Massa Corporal) através da mudança no estilo de vida, que engloba melhorias na alimentação e exercícios físicos. Os medicamentos eram indicados apenas alguns anos após a adoção de um estilo de vida mais saudável, caso o paciente não conseguisse reduzir o peso e as comorbidades.

Agora, a nova diretriz prioriza a mudança do estilo de vida já aliada ao uso de medicamentos, com a individualização do tratamento.

O tratamento farmacológico passa a ser recomendado para pacientes com complicações relacionadas à obesidade mesmo com IMC abaixo de 30, considerando medidas como a circunferência da cintura e relação cintura/altura. Antes o IMC mínimo para a indicação dos medicamentos era 35.

"Não é uma receita de bolo, mas a nova diretriz é um guia clínico construído com base em evidências e voltado à realidade brasileira. Ela respeita a individualidade do paciente e valoriza a decisão compartilhada", destaca o endocrinologista Fernando Gerchman, membro do Departamento Científico da Abeso e coordenador do grupo de trabalhos para a diretriz farmacológica.

Segundo o profissional, que também atende em consultório em Porto Alegre (RS), alguns de seus pacientes estão em tratamento seguindo as novas normas e os resultados têm sido satisfatórios, com redução de peso e controle de outras doenças, como as cardiovasculares e diabetes.

Uso de canetas emagrecedoras

As mudanças de diretrizes para o tratamento da obesidade vieram em meio ao surgimento de medicamentos como os análogos do GLP-1.

No Brasil esse grupo é representado pelo Ozempic e Wegovy, que tem a semaglutida como princípio ativo e o Mounjaro, que usa a tirzepatida. Esses medicamentos só podem ser comercializados com receita médica.

"Esses fármacos demonstraram benefícios significativos em grandes ensaios clínicos. A semaglutida, por exemplo, reduziu em 20% os eventos cardiovasculares em pacientes com obesidade e histórico de doença cardíaca. Já a tirzepatida mostrou, em estudo com pessoas com pré-diabetes, uma redução de 99% na incidência de diabetes tipo 2", afirmou o diretor da Abeso, Alexandre Hohl, durante a apresentação das novas diretrizes.

Gerchman acrescenta que ainda é necessário informar mais médicos e pacientes sobre a existência e atuação dos fármacos, e que a disseminação desse conhecimento vai contribuir para o uso no tratamento da obesidade.

"Cada vez mais é preciso conscientizar médicos e pacientes sobre a doença e os resultados alcançados com o uso de farmacológicos. Quanto mais pessoas tiverem a informação e entenderem seus efeitos, mais elas vão se sentir à vontade para usá-los", diz.

Assim como Gerchman, outros médicos ouvidos pela DW ponderam que, como todo medicamento, o uso das canetas emagrecedoras só é indicado após uma avaliação de saúde detalhada por um profissional. Eventuais riscos e contraindicações só podem ser avaliados pelo médico, considerando outras doenças além da obesidade.

Outras mudanças no tratamento da obesidade

Poucas semanas antes da divulgação da nova diretriz da Abeso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) alterou as regras para a realização de cirurgias bariátricas no Brasil, ampliando o grupo para o qual o procedimento é indicado.

Entre as principais mudanças está a indicação a adolescentes a partir de 14 anos e a pacientes com IMC acima de 30, os chamados obesidade de grau 1. Antes o IMC mínimo era 35. O procedimento de cirurgia bariátrica é usado como tratamento da obesidade e das doenças relacionadas a ela.

Além disso, também foi apresentada em junho uma nova diretriz sobre obesidade e doença cardiovascular. Ela contém 34 recomendações, entre elas a de avaliação compulsória de risco cardiovascular em pacientes adultos com sobrepeso e obesidade, independente de queixas ou sintomas, para que possam ter um tratamento direcionado.

As diretrizes também preveem o rastreio anual de hipertensão, diabetes tipo 2 e dislipidemia — condição caracterizada por alterações nos níveis de colesterol e/ou triglicerídeos no sangue, que aumenta o risco de infarto, AVC e outras complicações cardiovasculares.

O documento, que será publicado no segundo semestre deste ano, foi elaborado por cinco sociedades médicas: a Abeso, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e a Academia Brasileira do Sono (ABS). A diretriz foi apresentada durante o Congresso Brasileiro de Obesidade e Síndrome Metabólica, em Belo Horizonte.