Como inteligência ajuda a combater o roubo de celulares no Brasil

Como inteligência ajuda a combater o roubo de celulares no Brasil

"MaioriaEstados mudam estratégia e focam em receptadores de aparelhos. Modelo adotado no Piauí se torna exemplo no país.Ter o celular roubado é um dos maiores pesadelos nas grandes cidades brasileiras hoje. Com o avanço da chamada identidade digital, o transtorno ganhou mais efeitos no cotidiano. Para coibir esse crime, estados brasileiros estão investindo em inteligência, e um modelo adotado no Piauí tem inspirado iniciativas semelhantes em outras regiões.

Neste ano, a segunda edição da Pesquisa de Vitimização e Percepção da Segurança Pública mostrou que 60% dos brasileiros evitam usar celulares nas ruas, enquanto 30% adotam medidas de segurança como deixar os aparelhos em casa ou apagar aplicativos bancários.

"Quanto mais a rotina é digitalizada, o celular está ligado a mais serviços, como emprego, saúde, educação, o que hoje é tudo muito vulnerável", afirma Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS).

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) de 2024, 917 mil celulares foram roubados e furtados no último ano no país, número que é visto como subnotificado pela falta de registros em muitos casos.

Enquanto isso, no Piauí, uma combinação de ações de inteligência conhecidas como Meu Celular de Volta impulsionou uma queda de 50% no número de aparelhos subtraídos nos últimos três anos. O projeto foi lançado no estado em setembro de 2023. Por meio dele, autoridades registram os telefones, e, cruzando dados, identificam os compradores dos celulares roubados.

A Polícia Civil gera intimações em lote e as envia pelo WhatsApp para os números dos possíveis receptadores. Além disso, o programa busca contatar a vítima rapidamente visando entregar o celular ao dono. Desta forma, o número de devoluções de aparelhos saltou de 980 em 2023 para 6.291 em 2024.

Foco no receptador

"O projeto mudou o foco da repressão, o modificando para os receptadores, já que, indiretamente, eles fomentam toda a cadeia criminosa. A quebra do ciclo, que envolve furto, roubo e receptação, é a principal missão", explica Matheus Zanatta, superintendente de Operações Integradas da Secretária de Segurança Pública do Piauí. Em certas abordagens aos receptadores, houve casos em que os aparelhos roubados foram adquiridos por apenas R$ 50.

"A alta liquidez dos aparelhos roubados é responsável pela existência de um mercado paralelo que configura o ciclo criminoso", aponta Zanatta. "A comercialização é fomentada, em regra, pelo intuito lucrativo do consumidor, muitas vezes em estabelecimentos que atraem o público com ofertas de preços baixos", pontua.

De acordo com Zanatta, com o receptador sendo notificado e podendo responder criminalmente, a inciativa tem um efeito pedagógico que visa fazer "com que o indivíduo pense duas vezes antes de adquirir um novo aparelho sem verificar sua procedência".

Steibel vê como bem-vindas as ações diante de um quadro de "pouca inovação em como combater os crimes nos últimos anos no país".

Com o Piauí comandado pelo governador Rafael Fonteles (PT), integrantes do partido vem buscando impulsionar as medidas em outras partes do país como uma bandeira eleitoral. Em São Paulo, membros da sigla anunciaram projetos de lei recentemente visando replicar as ações piauienses.

Por sua vez, o governador de São Paulo , Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse que já há iniciativas semelhantes no estado, e, por isso, não é necessário nenhum tipo de novo projeto. Em junho, foi implantado no estado o SP Mobile, sistema criado para recuperar aparelhos roubados.

Com base no cruzamento de informações de boletins de ocorrência e dados fornecido por operadoras de telefonia, a iniciativa emite notificações para celulares roubados. A partir de então, os usuários têm três dias para comparecer a delegacia para devolver ou comprovar a legalidade do aparelho. A polícia também faz buscas e fiscaliza lojas.

Após o sucesso da iniciativa piauiense, Ceará, Amazonas e Maranhão adotaram modelos próprios semelhantes ao do estado do Nordeste.

Apenas uma parte da cadeia criminosa

A revenda dos aparelhos, porém, é apenas uma parte de uma complexa cadeia de crimes. "No roubo de celular hoje, a venda do aparelho é a parte menos lucrativa. O que é mais rentável é acessar serviços com o Pix ou milhas. Depois, o aparelho pode ir para uma espécie de reciclagem", aponta Steibel.

"Com milhões de usuários de Pix e bilhões de transações por ano, os smartphones se tornaram carteiras digitais e alvos cada vez mais atraentes para roubo", afirma Adrianus Warmenhoven, especialista em cibersegurança da NordVPN

Nos últimos anos, houve melhoras nas medidas de segurança por parte dos dispositivos, o que acabou tornando a ação menos atraente do que nos momentos em que o Pix era uma novidade, avalia o delegado Clemente Castilhone, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo.

O anuário do FBSP mostrou que em 2024 houve uma queda de 12,6% no roubo e furtos de aparelhos celulares no Brasil em relação a 2023.

"Enquanto o celular permanecer bloqueado e os dados apagados, os criminosos têm opções limitadas e geralmente revendem o aparelho apenas pelas peças", aponta Warmenhoven. Por essa razão, há grande valor para aqueles aparelhos que são subtraídos desbloqueados, como quando alguém está conversando ou usando algum aplicativo na rua.

"O mercado de reposição de peças é muito grande. Costumamos ver grupos pagando mais por aparelhos como os Iphones visando revenda, enquanto os mais baratos vão para desmontes", afirma Castilhone.

Nas ações do Piauí, os mandados de busca e apreensão não se limitam aos aparelhos, com atuação também contra estabelecimentos que revendem os celulares adquiridos de forma criminosa. "Embora o foco principal seja desarticular lojas que realizam a comercialização dos aparelhos inteiros, o escopo da busca e apreensão pode incluir a logística de desmanche e revenda de componentes", afirma Zanatta.

Crime globalizado

Uma das grandes dificuldades para as ações é o caráter multinacional que o roubo de celulares ganhou nos últimos anos. Recentemente, teve grande repercussão global a quantidade de aparelhos roubados no Reino Unido que acabavam sendo enviados e vendidos na China , onde funcionavam normalmente. No caso brasileiro, é frequente que os itens, especialmente com maior valor, sejam enviados a países do continente africano.

"O roubo de celulares se tornou um crime globalizado, com aparelhos roubados em um país sendo frequentemente revendidos no exterior após serem modificados para burlar as listas negras de IMEI", afirma Warmenhoven.

"Em países como Marrocos e Nigéria há grande demanda, e, depois que os aparelhos são reiniciados, não há muito que fazer", afirma Steibel. Apesar de esforços globais, em certos países, as medidas para bloqueios de IMEI, o número global de identificação para cada aparelho, não são aplicadas de forma uniforme.

"As quantidades de apreensões nos aeroportos são uma demonstração do potencial destes crimes", aponta Castilhone. Nos últimos anos, foram interceptados diversos passageiros tentando embarcar a partir de Guarulhos para destinos na África na posse de dezenas de celulares.

Em 2023, a Polícia Civil de São Paulo anunciou a prisão um homem apontado como o maior receptador de celulares roubados ou furtados no Brasil. Na época, o cidadão de Guiné-Bissau foi apreendido com 312 aparelhos.

Com os riscos globalizados, Warmenhoven alerta para cuidados. "Os usuários devem fazer backup de seus dados, proteger seus aplicativos financeiros e permanecer vigilantes", aponta. "As primeiras 48 horas são críticas: as vítimas devem bloquear ou apagar remotamente o dispositivo, alterar as senhas e entrar em contato com a operadora imediatamente", recomenda.

"As vítimas não devem responder a mensagens fraudulentas que costumam chegar após o roubo, alegando que os criminosos obtiveram seus dados ou as instruindo a desativar os recursos de bloqueio remoto", alerta. Tais golpes visam convencer as vítimas a remover as proteções para que o dispositivo possa ser revendido, explica.