O risco de interferência indevida nas eleições está fazendo a sociedade conhecer melhor o Telegram, rede social que se transformou em território livre para todo o tipo de crimes e desinformação. Lançado em 2013 na Rússia, o aplicativo se expandiu rapidamente e tem 500 milhões de usuários ativos em vários países. No Brasil, o crescimento é vertiginoso. Em 2019, apenas 13% dos smartphones usavam a plataforma. Neste ano, 60% dos brasileiros já usam o serviço em seus celulares, segundo a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box.

O problema é que a rede cresceu permitindo que todos os usuários a usem de forma anônima e sem restrições de conteúdo. Isso transformou a plataforma em um espaço aberto para vários crimes: propaganda nazista, pedofilia, tráfico de drogas, produção de dinheiro falso, estelionato, venda de armas, comércio de bancos de dados com informações pessoais (RG, CPF) e circulação de tutoriais para falsificar documentos. Até recentemente, esse tipo de conteúdo só era disseminado na chamada Dark Web, longe dos olhos das autoridades e do público leigo. “O Telegram deixou isso trivial para o usuário comum”, afirma Fernando Paiva, editor do Mobile Time, site que faz o mapeamento do crescimento da plataforma.

O aplicativo abriga, por exemplo, um grupo intitulado “estupro”. Nele, é possível ler a seguinte mensagem: “As mulheres não passam de pedaços de carne, autômatos sem alma, sem a mínima capacidade criativa”. No grupo “e-Crime Store”, os usuários se dedicam a burlar sistemas bancários, divulgar informações sigilosas de CPFs e explicar como roubar dados e senhas, além de vender cartões de crédito falsos. Na última semana, ele contava com 14,6 mil usuários, sendo 821 ativos. O “vendo armas e munições” ostentava rifles, pistolas e revólveres de todos os calibres. O administrador sugeria que os pagamentos fossem feitos na moeda virtual Bitcoin: “É o método de pagamento mais comum, para evitar rastreamento”. No Telegram ainda há comercialização de drogas e pedofilia e é fácil encontrar apologia ao racismo e à homofobia, além de zoofilia e necrofilia.

O fato de a rede funcionar abaixo do radar das autoridades, tendo até o último dia 26 ignorado todas as tentativas de contato do Judiciário, também a transformou em uma importante ferramenta política no Brasil. No Telegram proliferam discursos de ódio, fake news sobre vacinas e informações falsas sobre urnas eletrônicas. E foi exatamente o risco às eleições de outubro que colocou a rede na mira do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Eraldo Peres

A reação partiu do ministro Alexandre de Moraes, do STF. A pedido da Polícia Federal, ele determinou o bloqueio do aplicativo no dia 18. Tomou essa atitude, entre outras razões, porque a plataforma vinha sendo utilizada pelo blogueiro bolsonarista Allan dos Santos para burlar ordens judiciais. Investigado por difusão de fake news e por integrar milícia digital para atacar a democracia, Santos migrou para esse aplicativo após o bloqueio de seus canais em outras plataformas.

A forma de fazer o Telegram se submeter às leis estava em discussão há tempos nas cortes superiores. O bloqueio era a medida mais extrema em consideração, e também a mais vulnerável a críticas. Mas se mostrou plenamente efetiva, o que garantiu o apoio de outros ministros a Moraes. Dois dias depois da sentença, o ministro pôde revogar a decisão pois o próprio dono do aplicativo, Pavel Durov, divulgou “desculpas públicas”, alegando que a Justiça tinha tentado se comunicar com um “email defasado”. Também cumpriu todas as exigências de Moraes. Bloqueou os perfis relacionados a Santos, que está foragido nos EUA, excluiu uma mensagem de Bolsonaro que divulgava um inquérito sigiloso da PF sobre ataque hacker ao STF, designou um representante legal no Brasil e anunciou que vai monitorar os cem maiores canais brasileiros da plataforma. Ao todo, a rede anunciou sete medidas de combate às fake news.

O ministro do STF, Alexandre de Moraes, exige que o Telegram se adeque às leis nacionais para continuar no País

Processo eleitoral

Essa conversão não significa que a empresa passou a reconhecer e respeitará o ordenamento jurídico brasileiro. É necessário acompanhar a disposição da rede. O ministro Edson Fachin, atual presidente do TSE, havia proposto uma reunião no dia 24 com a plataforma para combater às fake news. A rede se comprometeu a comparecer. Isso representou um primeiro teste. Diferentemente do Telegram, oito plataformas digitais já fizeram um acordo nesse sentido com o TSE: Twitter, TikTok, Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, YouTube e Kwai. Todas se comprometeram a manter mecanismos de filtragem de informações enganosas, a remover conteúdo em desacordo com as regras, assim como trazer informações oficiais sobre o processo eleitoral.

PROCURADO O blogueiro Allan dos Santos está foragido nos EUA e conta com as facilidades do Telegram para se comunicar (Crédito:Divulgação)

O cerco judiciário atingiu em cheio o bolsonarismo. Investigado por disseminar informações falsas sobre as urnas eletrônicas, o presidente foi o maior crítico da decisão. Disse que o bloqueio foi um “crime” que “pode causar óbitos”. O Telegram se tornou um instrumento fundamental dos aliados do presidente e seu eventual bloqueio pode quebrar a perna da campanha da reeleição. Bolsonaro tem um canal com 1,3 milhão de seguidores, o maior da plataforma no Brasil. Apenas por causa da ameaça de banimento, os perfis dele e de seus filhos Flávio (114 mil) e Carlos (98 mil) conseguiram quase 130 mil novos seguidores. Os partidários do presidente usam ativamente a rede. Uma das maiores aliadas, a deputada Carla Zambelli, tem mais de 140 mil seguidores. Esse é um território praticamente inexplorado pela oposição. Os outros presidenciáveis ainda estão praticamente ausentes dessa rede, que é a que mais cresce no Brasil: Lula tem 52 mil seguidores, Ciro Gomes reúne 19 mil e Sergio Moro, 5,9 mil.

O uso do Telegram como fonte vazamento de informações políticas é investigado pela Polícia Federal desde 2019, com mensagens da Lava Jato expostas ilegalmente

DUBAI Telegram mudou de país várias vezes, agora está nos Emirados Árabes (Crédito:Divulgação)

Não é novidade o uso político da plataforma. A PF já havia suspeitado da conivência da rede com o vazamento das mensagens da Lava Jato em 2019. Foi a divulgação das mensagens no Telegram de Sergio Moro e dos procuradores da operação que levou à série de reportagens do jornalista Glenn Greenwald no site “The Intercept”. O dono do Telegram, o bilionário Pavel Durov, é uma figura polêmica que costuma se exibir em fotos sem camisa e já precisou transferir a sede da companhia em diversas ocasiões por causa dos problemas com a justiça: depois da Rússia, a companhia já se mudou para a Alemanha, Reino Unido, Cingapura e Dubai, onde fica atualmente. Ele criou a plataforma com o irmão, Nikolai, e sempre tentou defender seu uso como instrumento libertário e democrático. É uma meia verdade que esconde um maroto interesse comercial. A rede foi uma ferramenta importante contra a repressão política em países como Belarus, Irã e Ucrânia. Mas, desde que as democracias passaram a ser ameaçadas pelas campanhas conspiracionistas da direita alternativa, ela tem sido a única grande plataforma a se negar a combater a desinformação, na contramão das big techs. Agora, o cerco está se fechando.

Isso pode servir de alerta para Bolsonaro, que ainda conta com o Telegram para contestar o resultado das eleições. Se insistir, o presidente pode ter o mesmo destino dos líderes extremistas com os quais contava para criar uma aliança internacional. Trump foi banido do Twitter e do Facebook após a tentativa de invasão do Congresso americano em janeiro de 2020. Isso acabou com a principal forma de comunicação do americano, que sempre ignorou a imprensa (como Bolsonaro faz no Brasil). Ameaçado, o Telegram já precisou se curvar à Justiça alemã, como faz agora no Brasil. É um sinal de que o tempo está fechando também no mundo digital para os aspirantes a autocrata.

Seguidores ilimitados

OTelegram não serve apenas para troca de mensagens instantâneas. Também funciona como uma rede social, onde cada usuário pode ter um canal próprio com um número ilimitado de seguidores. As pessoas podem participar de grupos com até 200 mil pessoas – no rival WhatsApp, os grupos são limitados a 256 membros. “É útil e tem funcionalidades que atraem pessoas e empresas. É possível transmitir arquivos sem limite de tamanho, incluir robôs para a execução de tarefas e participar de chats secretos”, explica Wally Niz, diretor da Navita, companhia de gestão de mobilidade corporativa.