Quem acompanhou o discurso em que Jair Bolsonaro tentou responder às acusações de Sergio Moro, na sexta-feira, 24, viu uma figura destoante. Paulo Guedes era o único de máscara, sem paletó nem sapatos sociais (consta que usava um calçado de camurça, mas alguns viram apenas meias), e conferia o relógio repetidamente. Como a linguagem corporal revela, estava desconfortável e se sentia isolado. É fato. Nesse dia, enfrentava seu pior momento no governo. Dois dias antes, Bolsonaro tinha ameaçado seu programa de reformas estruturais e disciplina fiscal ao apostar em um ambicioso plano desenvolvimentista, o Pró-Brasil. O projeto foi concebido pelo ex-secretário da Previdência de Guedes e atual titular da pasta do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho — que virou o maior inimigo do ministro da Economia na Esplanada dos Ministérios. Como era previsível, Guedes ameaçou sair na segunda-feira, 27. O presidente precisou então recuar, para não agravar as várias crises simultâneas que fabricou. Convenceu o ministro a permanecer e se desdobrou em declarações de apoio. “O homem que decide na economia é um só, chama-se Paulo Guedes”, disse após se reunir com o ministro. Mas há dúvidas sobre a renovação de votos matrimoniais.

ADVERSÁRIO Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, patrocinou o Pró-Brasil e virou o maior inimigo de Paulo Guedes na Esplanada (Crédito: Mateus Bonomi / AGIF)

Bolsonaro já havia decidido mudar os rumos da economia antes da pandemia, pois buscava acelerar o crescimento a qualquer preço, para garantir a reeleição. Guedes sabia que tinha pouco tempo para viabilizar sua pauta no Congresso, e já tinha dito que “temos 15 semanas para mudar o Brasil”. Com a crise, demorou para reorientar o ministério para ações de curto prazo contra os efeitos imediatos da queda na atividade econômica. Os programas adotados, como o coronavoucher, foram impulsionados pelo Congresso, e mesmo assim têm sido lentos e imperfeitos.

Auxílio aos estados

A ajuda aos estados e municípios, diretamente afetados pela queda na arrecadação e pelos gastos urgentes com itens de saúde, veio a reboque de um plano que dormitava na Câmara desde o ano passado, o Plano Mansueto. Feito para socorrer governos endividados, ele era imperfeito, mas pelo menos exigia contrapartidas, como privatizações e limitações nos gastos com funcionalismo. Com a desarticulação governista, esse plano foi reformulado na Câmara, que aprovou um novo projeto que recompunha as receitas para os níveis de 2019. Mas dava um passe livre para os gastos dos estados, que poderiam conceder novos benefícios fiscais e aumentar despesas com servidores. Com a crítica de Guedes, que o chamou de “bomba fiscal”, o presidente do Senado articulou um plano alternativo. Na última quinta-feira, 30, o novo projeto, relatado pelo próprio Davi Alcolumbre, foi finalizado com propostas diferentes da Câmara: veta reajustes salariais ao funcionalismo até dezembro de 2021 e estabelece um socorro de R$ 60 bilhões em quatro parcelas (Guedes queria no máximo R$ 40 bilhões). O projeto prevê ainda a suspensão dos pagamentos de dívidas com a União neste ano, além de permitir a renegociação de dívidas com bancos públicos e organismos internacionais. Somado ao auxílio direto, soma R$ 120 bilhões. A votação estava prevista para o sábado, 2. Se passar, ainda precisará ser aprovado na Câmara. As negociações devem avançar, mas com percalços. Enquanto Bolsonaro quer asfixiar os Estados mais ricos, como São Paulo e Rio, por causa de seus adversários, o Congresso quer criar dificuldades para o próprio governo federal, que precisa respeitar o teto de gastos, a regra de ouro (não pode fazer financiamentos para pagar despesas correntes) e administrar verbas não obrigatórias cada vez menores.

Se a proposta final não tiver mecanismos claros que limitem os gastos, pode implodir na prática o teto de gastos, a âncora responsável pela volta da confiança na economia no governo Temer. E é exatamente esse mecanismo que está na mira das propostas que estavam sendo buriladas no Planalto, à revelia do ministro da Economia. Isso significa abandonar a política de responsabilidade fiscal, que tem garantido a baixa sustentável dos juros e a inflação sob controle. Seria uma volta aos anos Dilma Rous-seff. Esse risco é concreto. Com o Pró-Brasil, Bolsonaro flertou com uma volta ao modelo desenvolvimentista, com o Estado induzindo o crescimento. Numa hipótese ruim, é uma reedição do PAC dos anos petistas, que torrou R$ 100 bilhões e deixou como legado 5 mil obras paralisadas. Em outra hipótese pior ainda, é uma versão saudosista do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que fracassou e endividou o País no governo Geisel. Com a paz selada pelo presidente com Guedes, o Pró-Brasil foi enquadrado. Para mostrar tranquilidade, o ministro deu uma entrevista na quarta-feira, 29, dizendo que “o Brasil tem rumo” e que os projetos dos ministérios precisarão “caber no Orçamento”. Ao seu lado, o general Walter Braga Netto (Casa Civil) disse que ocorreram “equívocos” na interpretação do Pró-Brasil.

Ameaça do centrão

Guedes voltou a ser prestigiado, mas o enfraquecimento do presidente e a aproximação com o Centrão indicam que seu programa corre riscos. Para comprovar essa tese, no mesmo dia em que foi “reconfirmado”, o deputado Arthur Lira, um dos líderes do Centrão, afirmou que ele está mais preocupado com “bancos, com mercado financeiro e bolsa de valores” do que com o País. O governo caminha para um jogo viciado e aberto à corrupção com o Centrão, e o Congresso terá dificuldades após a pandemia para retomar a agenda reformista, bem ou mal defendida por Rodrigo Maia. O atual presidente da Câmara deixa seu cargo em fevereiro, e Bolsonaro aposta exatamente em Lira para ocupar sua cadeira. Os planos populistas do Congresso e do presidente podem representar um tsunami de gastos irresponsáveis. Guedes errou ao insistir na recriação da CPMF, e demorou ao enviar as três PECs que reorganizam o Estado. Até hoje foi limitado pelo presidente, que não tem articulação com o Congresso e se negou a encaminhar a Reforma Administrativa, que atinge os servidores — um dos pilares de sua agenda corporativista. Mas o ministro é o fiador de um projeto modernizante que traz confiança de novos investimentos. Porém, precisa vencer o isolamento crescente. Como o retrato oficial do governo, do dia 24, revelou.