Como denunciar bullying nas escolas da Alemanha

Como denunciar bullying nas escolas da Alemanha

"CercaLegislação alemã determina que a criança tem o direito a uma educação sem violência. No entanto, imigrantes acabam às vezes sofrendo discriminação e nem sempre escola dá a atenção necessária ao problema.Quando a filha de Aline e Eduardo começou a ser isolada por uma colega na escola, aos 9 anos, os pais se depararam com uma situação desafiadora. Aos poucos, o que era uma "brincadeira de afastar a filha do grupo" se intensificou: a menina sofria agressões verbais e comentários xenofóbicos.

A família imigrou para a Alemanha em 2015 por conta do doutorado de Eduardo. Na época, o filho mais novo tinha 9 meses e a filha mais velha, 2 anos. No começo, a adaptação foi fácil, conta Aline. Ao entrar no ensino fundamental, no entanto, a exclusão começou e a criança passou a relatar que "não conseguia mais brincar com os colegas".

"Coisas dela eram rasgadas, cadernos sumiam, ela era chamada de burra o tempo inteiro", são apenas algumas das situações que a filha mais velha do casal passou entre o terceiro e quarto ano do ensino fundamental.

A família tentou resolver o problema junto à escola, mas os episódios continuaram – e se intensificaram. Sem orientações claras e efetivas sobre como denunciar a situação da filha, Aline começou a estudar sozinha o sistema escolar alemão e a legislação vigente. "Eu vou até o fim para defender uma criança", afirma a mãe.

O que fazer em caso de bullying

Gloria Bezerra de Menezes Hermsdorf é brasileira e advoga na Alemanha há 20 anos, atuando em inúmeros casos de intimidação em ambiente escolar. "São coisas que podem acontecer em qualquer país, mas aqui na Alemanha muitos brasileiros deixam de ir procurar seus direitos, deixam de se proteger porque acham que não vale a pena ou que não vão receber a ajuda necessária", pontua.

Segundo a advogada, o primeiro passo que as famílias nessa situação devem tomar é protocolar tudo extrajudicialmente, anotando datas, horários, envolvidos e uma descrição da denúncia. A partir desse registro informal, é possível relatar formalmente ao professor responsável pela turma. Ela recomenda que o relato seja feito sempre por e-mail oficial para comprovar o esforço em resolver a situação.

Caso o contato com o professor não resulte em mudanças no comportamento relatado, o próximo passo é comunicar diretamente a direção da escola por meio de uma reclamação oficial. "Aqui na Alemanha, a diretoria da escola tem obrigação de ajudar a resolver aquele conflito, porque o direito constitucional alemão proíbe qualquer tipo de discriminação", reforça a advogada.

A legislação alemã determina que a criança tem o direito a uma educação sem violência. De acordo com Hermsdorf, o código civil do país implica que a escola tem responsabilidade em garantir esses direitos também em ambiente escolar.

Se o problema continuar, os pais podem solicitar um prazo para uma resolução efetiva. Dependendo da gravidade da situação, o Conselho Tutelar da Alemanha pode ser acionado. Com esse último passo, o caso pode ir parar no tribunal. Os sistemas de denúncias podem variar de estado para estado, a depender da legislação local vigente. Berlim, por exemplo, instituiu uma instância para denúncias de discriminação nas escolas.

Esse foi o processo seguido por Aline e Eduardo que entraram na justiça após não conseguirem resoluções efetivas diretamente com a escola. O caso foi julgado somente em 2024, com decisão favorável à família: a escola foi responsabilizada, funcionários afastados e novas estruturas de apoio implementadas. Mas isso veio com um preço alto: além do valor dos advogados, uma exaustão mental se prolongou por anos.

"Foi um desgaste tremendo da nossa família, três anos passando por isso", afirma Eduardo. "Nós somos um caso que eu acredito que seja uma exceção, porque quando esse tipo de coisa acontece com imigrante, ele fica com medo de peitar, ele fica com medo de levar em frente. E outra, acaba batendo no bolso, porque é muito caro isso tudo."

A advogada brasileira, no entanto, reforça que é possível buscar justiça por meios legais mesmo sem as condições financeiras para arcar com um profissional. No tribunal civil, pessoas com pouca renda podem solicitar assessoria jurídica gratuita. Outras vias também são possíveis por meio de instituições de apoio à imigrantes. A própria Embaixada do Brasil em Berlim oferece assistência jurídica a cidadãos brasileiros.

Pesquisas evidenciam casos de discriminação

O caso relatado por Aline e Eduardo não é o único na Alemanha. De acordo com um relatório da Agência Federal Antidiscriminação (ADS) da Alemanha, foram recebidos 1.336 pedidos de consulta na área da educação entre 2021 e 2023. Deste total, cerca de 51% estavam relacionados a casos de discriminação racial ou por origem étnica.

Um estudo da ADS de 2016 também mostrou que 23,7% dos estudantes entrevistados disseram ter sofrido discriminação na escola.

A filha de Juliana Krach também faz parte das estatísticas alemã. A criança, de 10 anos, filha de mãe brasileira e pai alemão, já relatava episódios de intimidação desde os 7, quando ainda estava na pré-escola, onde era zombada por confundir o português com o alemão. Na época, a menor de idade começou a expressar seus sentimentos por meio de pinturas. "A menina a chama de imigrante pobre, além de influenciar outras meninas a fazerem bullying", conta a mãe.

O preconceito em sala de aula é vivenciado por alunos de diferentes nacionalidades, mas não está atrelado unicamente ao imigrante, tendo relação também com intolerância étnica e/ou religiosa.

As marcas causadas pelo bullying e discriminação ainda causam efeitos em ambas as famílias. Além do acompanhamento psicológico que ambas as crianças fazem, Juliana cogita voltar ao Brasil para evitar que sua filha siga nessa situação.

Estereótipos discriminatórios reforçados

O sistema educacional alemão tem enfrentado desafios importantes diante da crescente diversidade em sala de aula, impulsionada especialmente pela chegada de migrantes e refugiados nos últimos anos. Segundo Marc Helbling, pesquisador com foco em migração e integração na Universidade de Mannheim, esses problemas já existiam antes e são postos em evidências devido a novas configurações.

Por exemplo: a Alemanha já enfrenta uma escassez de professores em muitas regiões – isso não é causado pela migração. "A imigração e a chegada de mais crianças migrantes aumentam esse problema, mas não são a origem dele", reforça o professor.

Apesar dos desafios, mudanças nas escolas podem conscientizar os alunos em relação à diversidade em sala de aula e na sociedade. Segundo Aileen Edele, pesquisadora em temas de migração no Instituto de Integração Empírica e Pesquisa de Migração (BIM) de Berlim e no Instituto de Ciências da Educação na Universidade Humboldt de Berlim, alguns professores ainda resistem à ideia de promover a inclusão e a prevenção da discriminação dos alunos.

"De forma geral, as escolas ainda precisam aceitar que a diversidade é o novo normal", ressalta a pesquisadora.

O material didático utilizados pelas escolas tem também um papel importante para combater ou reforçar estereótipos discriminatórios. "Embora os livros escolares tenham melhorado até certo ponto, ainda falham com frequência em retratar a diversidade étnica, racial e religiosa de maneira positiva e/ou naturalizada", afirma Edele.

Em fevereiro de 2025,viralizou nas redes sociais o caso de um livro didático em alemão, utilizado nas escolas, onde um garoto brasileiro fictício é retratado de forma pejorativa. " Eu não vou à escola. Pela manhã, procuro restos de comida nas latas de lixo. Eu gostaria de me tornar um jogador de futebol", dizia o texto em alemão. Após a repercussão negativa, a editora pediu desculpas e afirmou que iria alterar o material.

"É fundamental que as escolas ofereçam a todos os alunos as melhores oportunidades educacionais possíveis. Isso inclui atuar ativamente para prevenir a discriminação e o racismo contra estudantes em minoria, um compromisso que também está refletido nas políticas educacionais alemãs", reforça Edele.