De longe, o ponto de desembarque às margens do rio Amazonas chama a atenção de quem chega a Puerto Nariño, na Colômbia, a 80 quilômetros da fronteira com o Brasil. É fim da estação seca, a longa escadaria de madeira que dá acesso à cidade fica visível devido ao nível mais baixo de água.
A partir dali, o trajeto pelas ruas só pode ser feito a pé – ou de bicicleta. Nenhum veículo motorizado circula pelas ruas cimentadas. Motos, cada vez mais populares no asfalto amazônico, também são proibidas.
Com pouco mais de oito mil habitantes, o povoado colombiano ganhou status de cidade há 40 anos por sua posição estratégica e sensível, dividindo o mesmo rio com Brasil e Peru. Foi quando baniu de vez os veículos movidos a petróleo.
A decisão, explica a prefeitura, segue a vocação ecológica do município. Mas foi só em 2022 que uma lei proibiu formalmente a circulação de automóveis com o objetivo de preservar o meio ambiente e garantir a tranquilidade dos moradores.
“Esta medida conta com o apoio e compromisso da comunidade local, que assumiu a proteção ambiental e mobilidade sustentável como parte de sua identidade cultural e turística”, explica Horácio Ahuanari Serafin, secretário de Planejamento e Infraestrutura, em resposta escrita à DW.
Os únicos veículos autorizados a circular são o trator que coleta o lixo e a ambulância para emergências médicas. No dia a dia da cidade, entre as construções dentro da pequena área urbana, o único som de motor que se ouve, ao longe, é dos barcos.
As regras de um “louco” perduraram
Muito antes de Puerto Nariño se tornar um povoado, populações indígenas habitavam a região. Até hoje, membros das etnias indígenas ticuna, cocama e yagua compõem a maior parte da população, cerca de 95% do total.
Hoje exemplo de turismo sustentável, a cidade tem uma história que guarda episódios de conflitos com o Peru, que disputava com a Colômbia aquela região amazônica. A guerra chegou ao fim de 1934, e a visita do barco a vapor Nariño, que transportava uma comissão binacional para ver se o acordo de paz mediado pelo Brasil estava sendo cumprido, pode ter dado o nome ao povoado.
Antes de virar município em 1984, Puerto Nariño era uma unidade administrativa gerenciada por um administrador local. O último deles, anterior à eleição de um prefeito, tinha hábitos considerados muito rígidos pela população, mas que eram seguidos seriamente.
“Todo mundo considerava ele um ‘louco’ porque mandava limpar os campos, capinar, colocava avisos para não jogar lixo no chão. Desde então, tomamos isso muito a sério”, relembra Zoraida Veloza Monteiro, dona de um hotel na cidade.
Foi assim que todos que viveram naquela época aprenderam a cuidar da natureza e reforçam os ensinamentos até hoje. “Isso vai entrando aos poucos na mentalidade das pessoas”, afirma Monteiro.
Rumo ao lixo zero
Isolada na Floresta Amazônica e a duas horas de barco de Letícia, cidade mais próxima, Puerto Nariño criou quatro pequenas rotas para coletar o lixo com o trator. Os resíduos orgânicos, que totalizam 55% do total, são enterrados. Os recicláveis são acondicionados e seguem, uma vez por ano, numa embarcação grande até Manaus.
“É lá que estão os grandes centros de transformação dos materiais, e é de lá que vem a maioria dos produtos para Letícia”, explica o sistema em prática há vinte anos Hugo Riaño Andrade, gerente da Empresa de Serviços Públicos.
A nova meta é cumprir o Programa Lixo Zero, criado pelo governo federal colombiano em junho último. Para diminuir o que é enterrado, o projeto prevê o uso de moscas-soldados na compostagem dos orgânicos. Parte deve virar ração para peixes e aves. O município quer transformar o aterro sanitário em um parque tecnológico e ambiental, o que custaria cerca de R$ 47 milhões.
“Esse passo é de especial importância para a Amazônia diante dos desafios das mudanças climáticas, tanto para evitar diferentes formas de poluição quanto para reduzir a pressão sobre a floresta”, explica Andrade, ainda sem a verba em mãos.
Água tratada só na cidade
Às margens do rio mais caudaloso do planeta, Puerto Nariño implantou um sistema de tratamento de água há 30 anos. O recurso é coletado do rio Loretayacu, afluente do Amazonas, tratado numa unidade e distribuído, por enquanto, para 234 casas. Mas esta entrega não é recomendada para o consumo humano, mas para outros usos, como lavar roupa, por exemplo.
A água boa para beber e cozinhar vem de três plantas menores, que chegam em pontos estratégicos espalhados pelas ruas. É assim que os moradores abastecem galões usados pelas famílias em casa, carregados sobre os ombros ou em carrinhos de mão.
As 20 comunidades indígenas distantes do centro urbano ainda sofrem com a falta de água própria para consumo humano. Em apenas cinco delas o recurso é captado e distribuído para outros usos.
Jesus, 18 anos, é indígena da etnia ticuna, e integra uma dessas comunidades. Para seguir os estudos, ele se mudou para a cidade e é um dos internos da escola San Francisco de Loretoyato, localizada a 15 minutos de caminhada do centro.
“Ano passado, com a seca no rio Amazonas, minha comunidade sofreu muito sem água. Também falou peixe”, diz à DW em uma das salas de aula. “Meu sonho é estudar engenharia e ajudar minha família”, complementa.
O prefeito da cidade reconhece as limitações. “Como um pequeno município na Amazônia, temos poucos recursos para investir. Ainda sofremos com um abandono em nível nacional”, diz à DW por telefone Edilberto Pinto.
Com um sistema de tratamento de águas residuais nos planos, o esgoto produzido pelos moradores ainda vai para o rio Amazonas.
Turismo e cuidado
A cidade ganhou o selo de Destino Turístico Sustentável, certificação do governo colombiano, em 2011. Pesca e agricultura são importantes, como banana e mandioca para produção de farinha, mas destinadas mais para consumo interno. Com o tempo, a visita de turistas se transformou na principal fonte de recursos. Cerca de 1.300 pessoas de fora desembarcam em Puerto Nariño por mês, a maior parte são estrangeiros.
Um dos principais atrativos é o lago Tarapoto onde vivem botos. Vigilantes indígenas ficam de olho nos barcos que transitam por ali e monitoram se os acordos de pesca, estabelecido entre as comunidades, estão sendo respeitados.
Para quem nasceu na cidade e vive do turismo, o cuidado é a garantia do futuro. “Temos amor pelo o que é nosso”, diz Monteiro. “Sabemos que vivemos no lugar que fabrica chuva para o resto do país, mas somos pouco recompensados. Mas continuamos cuidando”, fala sobre a Floresta Amazônica, que funciona como uma bomba de água, fornecedora de umidade via “rios voadores” para vários países, inclusive para o Brasil.