Conforme o Alzheimer avança, o indivíduo se desconecta de sua realidade interna e externa. Do lado de dentro, aos poucos perde a lembrança do que fez minutos atrás, do que aconteceu semanas antes, até se esquecer de quem foi e de quem é. Do lado de fora, as dificuldades espelham o caos interno. Há limitações para reconhecer objetos, pessoas, as palavras começam a fugir e chega o momento em que elas não saem mais. A comunicação com o mundo ao redor cessa. Caracterizada pela morte progressiva de neurônios, a enfermidade não tem cura, mas alívio. Parte vem de remédios que retardam sua progressão. Outra está surgindo da arte.

Recentemente, o artista americano Neil Kerman, que desenvolve um trabalho usando a pintura como instrumento de terapia, esteve em São Paulo para mostrar resultados de sua experiência. Eles foram estampados na exposição Alzheimer’s Awareness — a influência da arte e das cores como estímulo no tratamento da doença, e em atividades realizadas em centros de atendimento aos pacientes. “Minhas pinturas são repletas de cores vivas. Aos pacientes, o amarelo pode produzir excitação e o verde ou vermelho, prazer e felicidade”, disse o pintor à ISTOÉ. Sua visita à capital paulista foi organizada pela New York Contemporary Art Society com o apoio da Sinagoga Mishcan Menachen. A exposição dos quadros vai até dia 26, na Saphira e Ventura Galley.

TERAPIA Em São Paulo, pacientes fazem arte para melhorar a coordenação e a memória (Crédito:Divulgação)

Quando pincel, tinta e tela são colocados à frente do paciente, o impacto é igualmente interessante: a atenção se concentra, o esforço em executar o movimento desejado aumenta e lembranças brotam aqui e ali. Alguns podem precisar de ajuda extra no manejo do pincel, outros para encontrar a tinta. Mas todos de alguma forma conseguem expressar o que sentem e surgem referências guardadas em memórias que o cérebro afetado pela doença não consegue mais acessar.

Estímulo Intelectual

Não há até agora um trabalho científico que retrate o que acontece nos circuitos neuronais nesses momentos. O que se deduz é que a atividade aciona estruturas como o hipocampo, onde ocorre parte do processamento da memória, e também estimule a formação de caminhos cerebrais alternativos que cumpram funções que os originais não fazem mais. Por enquanto, o que se sabe com certeza é que os benefícios são inquestionáveis em relação a progressos na auto-estima, comportamento social e memória.

Uma das investigações científicas mais recentes foi feita pela dupla sueca Boo Johansson e Emelie Miller, da Universidade de Gotemburgo. Depois de acompanharem a evolução de portadores estimulados a pintar, elas constataram que o recurso é usado com prazer pelos pacientes e, por meio dele, são obtidas vitórias na contenção da doença. “Qualquer tipo de estímulo intelectual ajuda. A arte entra no mesmo caminho”, afirma o neurologista Rubens Gagliardi, chefe adjunto da Clínica Neurológica da Santa Casa de São Paulo e coordenador dos Departamentos Científicos da Academia Brasileira de Neurologia.
Atividades que contemplam a pintura fazem parte do cotidiano de instituições que são referência no tratamento em todo o mundo. No Brasil, a estratégia também está sendo adotada em diversos centros, apresentando os mesmos benefícios. Porém, por aqui a pintura e toda forma de arte ainda vem usada em intensidade menor do que a ideal.

Traço de agonia

A análise da obra de grandes artistas ajuda a ciência a entender melhor como se dá a evolução da doença. Uma das mais estudadas é a do pintor americano William Utermohlen (1933-2007). Após seu diagnóstico em 1995, ele criou auto-retratos por meio dos quais enxerga-se de que a maneira a enfermidade afetou sua habilidade técnica e tornou urgente sua necessidade de comunicação. Antes marcada por quadros que retratavam relações interpessoais em espaços ricamente ilustrados, a arte de Utermohlen deu espaço à expressão de sentimentos que revelam raiva, solidão. As cores ganharam tons sombrios. As pinceladas ficaram mais marcadas. É cedo para dizer de que maneira as informações podem ser usadas para refinar o diagnóstico — um ponto ainda desafiador —, mas a tormenta de Utermohlen, agora sob investigação científica, certamente ajudará na luta contra a doença.