Logo depois da meia-noite de 28 de outubro, um grupo de policiais foi surpreendido por cerca de 20 homens armados em motocicletas fugindo do Complexo do Alemão, um dos quartéis-generais da facção mais notória do Rio de Janeiro.
+Como governadores de direita exploram pauta da segurança pública para 2026
+60 jovens foram assassinados por dia no Brasil em 2023
Um tiroteio começou. Dois dos homens foram atingidos e caíram. Enquanto agonizavam por causa dos ferimentos, disseram aos policiais que o grupo havia recebido “informação vazada” de que a polícia estava se aproximando do quartel-general do Comando Vermelho e que eles tentavam escapar, segundo um registro de ocorrência policial daquele dia visto pela Reuters.
Algumas horas depois, fogos de artifício estouraram sobre o Alemão e a favela vizinha da Penha, uma forma comum de avisar que a polícia estava chegando, disseram dois moradores à Reuters. Moradores começaram a se abrigar onde fosse possível.
“Você fica com a adrenalina lá em cima”, disse Wazen Ferreira, um jornalista local que se escondeu em um bar com outros moradores quando os fogos começaram. “A boca resseca, só te dá sede.”
Por volta das 4h, mais de uma dúzia de blindados pretos e várias viaturas começaram a convergir para o complexo de favelas, levando centenas de agentes para ruas pouco iluminadas.
Integrantes da facção incendiaram montes de pneus e carros velhos para bloquear as ruas mais largas da Penha, liberando uma fumaça escura que subia ao céu, onde drones da polícia tinham dificuldade para acompanhar os movimentos dos criminosos em um labirinto de vielas e trilhas de terra.
O que veio a seguir foi um confronto de 17 horas que deixou ao menos 121 mortos, incluindo quatro policiais. Um quinto agente morreu semanas depois em decorrência dos ferimentos.
A operação policial — a mais letal da história do Brasil — tinha como objetivo neutralizar a liderança local do Comando Vermelho. Autoridades chamaram a ação de “sucesso” e prometeram mais operações desse tipo.
Mas uma análise da Reuters de depoimentos de oito oficiais superiores, entrevistas com testemunhas, relatórios policiais e evidências em vídeo desenha um quadro diferente: vazamentos fizeram suspeitos fugir, a polícia caiu em uma armadilha mortal que exigiu uma missão de resgate, e a cúpula do Comando Vermelho saiu ilesa.
Duas semanas após a operação, a Reuters teve de passar por barricadas improvisadas e pontos de controle da facção para acessar a favela. Uma dúzia de moradores, lideranças locais e autoridades governamentais disseram à Reuters que a ação não fez nada para romper o domínio do grupo criminoso sobre a comunidade.
“Eles acreditam ainda nesse plano falido de segurança pública que se estende por muito tempo e que não tem resultado”, disse Albert Alves, que dirige uma ONG local de educação, enquanto observava buracos de bala no espelho da sala de balé.
Caindo em uma armadilha
Quando a polícia chegou às favelas da Penha e do Alemão, o chefe da facção, Edgar Alves de Andrade, conhecido como Doca, e seus principais comparsas podem ter sabido por dias que seriam alvo.
O mau tempo — que prejudica a visibilidade dos drones — levou as forças de segurança a remarcarem a operação repetidas vezes, permitindo que rumores circulassem online, disse aos promotores Andre Luiz de Souza Neves, um dos diretores da polícia que planejou a ação.
Embora as autoridades tenham dito aos promotores que não identificaram vazamentos de seus planos, alguns afirmaram que a decisão de empregar um número extraordinário de viaturas e agentes pode ter alertado olheiros da facção, que monitoram os movimentos da polícia.
“A gente não chega ali com o elemento surpresa”, disse em depoimento Fabricio Oliveira Pereira, que chefia a unidade especial da polícia civil, a Core.
Mesmo com os criminosos sabendo que eles estavam a caminho, os policiais seguiram com o plano de cumprir mandados na casa de Doca, conhecida como “Toca do Urso”, onde se acreditava que o Comando Vermelho escondia armas, drogas e registros contábeis.
Eles nunca chegaram lá. Ao se aproximarem do endereço antes das 9h, os agentes que lideravam o avanço foram atingidos por disparos vindos da encosta acima, segundo depoimentos e registros de ocorrência.
O policial Bernardo Leal Annes Dias, de 45 anos, estava em um beco atrás da casa de Doca quando levou um tiro na perna direita; ela foi amputada posteriormente no hospital, depois que ele foi resgatado na garupa de uma motocicleta. Perto dali, o detetive Marcus Vinicius Cardoso de Carvalho, de 51 anos, morreu com um tiro no peito.
A polícia percebeu que os homens haviam caído em uma emboscada.
Os responsáveis pela operação decidiram que precisavam enviar reforços para “fazer uma contenção” dos criminosos que atiravam da encosta, disse em depoimento Moyses Santana Gomes, chefe da divisão antidrogas DRE.
Mas nem todos os policiais civis enviados estavam preparados para o que os aguardava.
Entre eles estava Rodrigo Velloso Cabral, de 34 anos, que havia ingressado na corporação dois meses antes.
Imagens de drone da polícia mostraram cinco de seus colegas caminhando ombro a ombro por uma trilha de terra que levava a morros arborizados, onde os comandantes haviam visto integrantes da facção entrarem horas antes.
Quando o grupo ficou sob fogo, um policial caiu no chão, segurando a perna. Outro levantou a mão ensanguentada.
Enquanto buscavam abrigo, Cabral, alguns metros atrás, pareceu recuar com outro colega em direção a uma área mais segura. Logo depois disso, disseram oficiais superiores, ele foi morto com um tiro na cabeça.
Nenhum dos homens usava capacete.
Emboscada no alto
No Brasil, a polícia civil é responsável por investigar crimes, enquanto a polícia militar é responsável por preveni-los.
Ambas as forças têm unidades táticas, incluindo o Bope, da polícia militar, que já esteve envolvido em algumas das operações mais letais do país e cujo emblema — um crânio atravessado por uma adaga — é conhecido em todo o país como símbolo de letalidade policial.
Na operação contra o Comando Vermelho, a polícia civil foi enviada para a favela para procurar suspeitos e apreender provas, enquanto o Bope, mais militarizado, ocupou posições nas colinas ao redor dos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio, onde vivem cerca de 280 mil pessoas.
As duas favelas são separadas por mais de um quilômetro de colinas ondulantes conhecidas como Serra da Misericórdia, esculpidas por pedreiras e cobertas por mata.
Em operações anteriores, integrantes da facção escaparam e receberam reforços cruzando a serra. Para impedir isso, uma unidade do Bope iniciou uma subida do Alemão ao topo da Serra da Misericórdia pouco depois das 5h para prender suspeitos e vigiar a atuação da polícia civil abaixo.
“Mais importante do que a guerra é quem fica do nosso lado nas trincheiras”, disse o comandante do Bope, Corbage, aos seus homens antes da operação, em um vídeo compartilhado posteriormente online. “Vamos lutar pelos nossos irmãos!”
Por volta das 10h, quando a notícia das primeiras baixas da polícia chegou à unidade do Bope na serra, alguns abandonaram suas posições para o que seu comandante, Marcelo Corbage, mais tarde chamou de “operação de resgate”, enquanto um segundo grupo permaneceu para manter a posição estratégica no alto.
Somente a unidade deles tinha paramédicos, disse ele aos promotores em depoimento.
A polícia estimou que havia cerca de 500 integrantes armados da facção na Penha e centenas a mais no Alemão.
Victor dos Santos, secretário de Segurança Pública do Rio, disse à Reuters que o plano era enviar ao todo 2.500 policiais para a área porque queriam uma vantagem numérica de cinco para um. Segundo Santos, essa proporção significava que, “em tese, o criminoso se intimidaria com essa força policial e se renderia”.
Mas em relatórios apresentados ao Ministério Público, a polícia disse apenas que havia enviado 1.100 homens ao complexo da Penha naquela manhã, ou aproximadamente uma proporção de dois para um.
Marcelo de Menezes, secretário da Polícia Militar do Rio, recusou-se a confirmar esse número, mas disse à Reuters em entrevista que os 2.500 policiais citados pelo governo incluíam um contingente de apoio à distância, como patrulhas nos bairros ao redor.
Quando o Bope desceu dos morros, encontrou seus colegas sob fogo. Imagens de drone mostraram dezenas de suspeitos — muitos armados com fuzis e vestidos com uniformes camuflados — entrando nas áreas mais baixas das colinas arborizadas.
Um drone registrou dois policiais do Bope arrastando o corpo de Cabral por uma trilha de terra, enquanto criminosos se escondiam atrás de árvores ali perto.
Com dois policiais já mortos e cinco feridos, o capitão do Bope Jansen Ferret disse aos promotores que era preciso impedir que os colegas fossem “dizimados” por traficantes. Naquele momento, disse ele, a missão passou a ser de “luta pela vida”. A Reuters não conseguiu determinar como um grupo de policiais do Bope conseguiu afastar a facção para resgatar o restante dos colegas feridos.
Por volta das 13h, a equipe de resgate do Bope havia perdido um de seus próprios agentes com um tiro na cabeça; outro foi levado ao hospital com um tiro no peito e morreu depois que médicos tentaram reanimá-lo por 40 minutos. Outros sete ficaram feridos.
Entre os jovens que se esconderam na mata estava Wellington Brito, de 20 anos, cuja mãe, Tauã, disse à Reuters que havia notado que ele estava levando mais dinheiro para casa desde que passou a se envolver com integrantes da facção. A Reuters não conseguiu verificar se ele estava armado.
Enquanto os tiros ecoavam pela favela, Tauã enviou mensagens ao filho e descobriu que ele estava fugindo. “Falei pra ficar em casa”, escreveu ela às 7h12 em mensagens vistas pela Reuters. “Você não precisa passar por isso.”
Quinze minutos depois, ele respondeu que esperava “limpar meu nome”, acrescentando: “Só quero que tudo isso acabe logo.”
‘A gente não vai sair aqui vivo’
Nenhuma das imagens editadas que a polícia divulgou à imprensa mostrou com detalhes o que ocorreu naquela tarde, embora organizações de direitos civis e defensores públicos tenham pressionado promotores e o Supremo Tribunal Federal a divulgar as gravações completas dos drones e das câmeras corporais usadas pelos policiais.
O que é certo é que pouco foi planejado. A polícia civil apresentou documentos legais naquela manhã prevendo o término da operação ao meio-dia. A polícia militar disse aos promotores que esperava encerrar até as 17h.
Corbage disse aos promotores que sua unidade não pensou em levar baterias extras para as 77 câmeras corporais usadas pelos 215 policiais mobilizados, porque não esperavam que a operação durasse mais de seis horas.
O Supremo Tribunal Federal determinou em 2022 que todo policial enviado a favelas do Rio deve estar equipado com uma câmera corporal em funcionamento.
Essa decisão fez parte da resposta do Brasil após uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos por operações policiais no Rio que mataram 26 pessoas em 1994 e 1995. Desde então, os recordes de mortes só aumentaram.
À medida que a carnificina se estendia naquela tarde, o medo tomou conta dos policiais, disse Neves em depoimento. “A gente não vai sair vivo daqui”, ele disse ter ouvido de um colega após a operação. Neves contou que, com o passar das horas, os policiais iam descobrindo quais colegas tinham sido baleados, gerando uma “angústia muito grande” para os que ainda estavam sob fogo.
Em algumas das operações mais letais do Rio, o número de mortos disparou após as primeiras baixas policiais, incluindo a incursão que deixou 28 mortos na favela do Jacarezinho em 2021 — até então a mais mortífera do Brasil.
“Existe um padrão de vingança, onde os agentes estabelecem o próprio senso de justiça”, disse Adilson Paes de Souza, ex-policial militar de São Paulo que pesquisa letalidade policial.
Santos, secretário de Segurança Pública do Rio, disse à Reuters que “não houve matança” e que as pessoas foram mortas porque decidiram confrontar a polícia. “Obviamente, não é razoável que o policial não tente salvar a sua vida ou de um companheiro”, acrescentou.
Corpos amontoados
Enquanto rajadas de fuzil ecoavam pela tarde, escolas fecharam, linhas de ônibus pararam de circular e grandes vias do Rio foram bloqueadas com ônibus incendiados em retaliação por criminosos, segundo a polícia.
Vítimas — a maioria já morta — começaram a chegar a um hospital próximo. Famílias que não encontravam parentes se reuniram na sede da polícia em busca de informações.
Os tiros diminuíram após o anoitecer, enquanto brasileiros eram informados no noticiário da noite que o número de mortos havia subido para 64, já suficiente para tornar a ação a mais letal da história do Rio.
Mas muitos moradores da Penha ainda tinham amigos e parentes desaparecidos. Erivelton Vidal, líder comunitário, estava com várias famílias que saíram da associação de moradores na base do morro, na Penha, para procurar na Serra da Misericórdia. Quando chegaram, ainda conseguiram ver um blindado da polícia, disse ele.
A unidade de elite recolheu dezenas de corpos, disse Corbage em depoimento, citando instruções de um agente da polícia civil que supervisionava a perícia.
Vídeos de testemunhas mostram que uma caravana de cinco rabecões chegou ao Instituto Médico-Legal (IML) da polícia do Rio depois das 22h30 daquela noite. Transportar corpos antes da análise pericial cria sérias dificuldades para uma investigação independente das dezenas de mortes daquele dia.
“A retirada dos corpos já sem vida se configura em mais desrespeito à legislação vigente”, disse Cassio Thyone, perito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um centro de estudos. Por volta das 21h na noite da operação, Vidal disse que moradores encontraram vários corpos na região.
Um grupo encontrou uma cabeça decepada presa entre galhos, registrada em um vídeo que foi confirmado por familiares e por um relatório do Congresso.
Tauã Brito, mãe de Wellington, estava entre eles. Usando a luz do celular, ela seguiu por uma trilha na mata, passando por dezenas de corpos sem encontrar o filho.
Vidal disse que o grupo de busca decidiu levar os corpos para uma rua principal da comunidade para que os moradores pudessem identificar seus familiares. “Pedi para não botar lá, porque lá tem uma creche”, disse ele. Mas, acrescentou, “acabou que prevaleceu a maioria”.
Ao longo da noite, moradores disseram à Reuters que carregaram dezenas de corpos em caminhonetes e os levaram até a praça principal da Penha, retirando roupas ensanguentadas de muitos deles.
Mães e crianças assistiram à fila de homens despidos crescer — alguns com vísceras expostas, outros com rostos mutilados além do reconhecimento, esfaqueados, decapitados ou sem membros do corpo.
Brito encontrou o corpo do filho Wellington sob um lençol manchado de sangue, alinhado com dezenas de corpos no meio da rua. Ela se ajoelhou ao lado dele e chorou, acariciando seu rosto.