Lei do Japão permite uso de conteúdo protegido por direitos autorais para treinar modelos de IA. Embora polêmico, uso da tecnologia nos animes tem se tornado cada vez mais comum.Um intenso debate tem movimentado o universo da animação desde que a OpenAI lançou uma função capaz de transformar fotos em ilustrações no estilo do Studio Ghibli. Logo, milhares de imagens com o visual que define a estética de Hayao Miyazaki – animador e cofundador do estúdio – se espalharam pela internet.
A geração instantânea de desenhos, porém, contrasta fortemente com a proposta artística do Studio Ghibli. Famoso por suas produções meticulosas, o estúdio japonês é conhecido por criar cada quadro de suas animações à mão – nesse processo, a conclusão de um filme pode levar anos.
Embora o próprio Studio Ghibli não tenha se manifestado sobre o uso de IA para simular sua estética, uma entrevista de 2016 com Miyazaki voltou a circular após a polêmica. Nela, ele se diz "completamente enojado" com conteúdos gerados por inteligência artificial, e os chama de "um insulto à própria vida".
A polêmica, no entanto, não impediu o Japão de continuar investindo na inteligência artificial para a produção de conteúdos de animação.
Lei permissiva
A Lei de Direitos Autorais japonesa, alterada em 2019, permite o uso de materiais protegidos por direitos autorais para treinar ferramentas de IA sem a necessidade de consentimento dos detentores dos direitos. Essa legislação, mais permissiva do que as da União Europeia ou dos Estados Unidos, foi criada justamente para atrair investidores do setor ao país.
Os profissionais do Japão já demonstram preocupação com essas regras. Segundo uma pesquisa de 2023 da Arts Workers Japan, com quase 27 mil profissionais do setor criativo, 94% dos artistas japoneses expressaram receios quanto à violação de seus direitos autorais por parte da IA.
Em resposta à repercussão pública, a Agência de Assuntos Culturais do Japão afirmou no ano passado que a regra não se aplica quando o uso de obras protegidas "prejudica de forma irrazoável os interesses do detentor dos direitos autorais."
Mesmo assim, proteger os direitos autorais se tornou uma batalha difícil. Charlie Fink, professor de cinema com IA na Chapman University, na Califórnia, diz que "mesmo que os legisladores concordem que usar conteúdo protegido para treinar IA seja errado, todos já foram afetados por essa abordagem."
"Então a pergunta é: se o crime for grande o suficiente, como você começaria a reparar o dano?"
Anime como soft power
O governo japonês vem promovendo suas produções culturais como uma forma de exercer influência global por meio da marca "Cool Japão". O anime, uma animação original do Japão, é extremamente popular em todo o mundo e se tornou um dos principais pilares desse soft power.
O mercado japonês de animes atingiu um recorde em 2023, com a produção de cerca de 300 títulos de TV apenas naquele ano, segundo a Associação de Animações Japonesas.
A IA já faz parte desse cenário. O primeiro anime que utiliza inteligência artificial, Twins Hinahima, foi lançado em março deste ano. Em 2023, a Netflix Japão também lançou um curta-metragem, Dog & The Boy, que usou arte gerada por IA para criar os cenários.
Risco trabalhista da IA
A tecnologia tem sido cada vez mais incorporada a esse tipo de produção num momento em que a indústria de anime enfrenta uma escassez de profissionais causada por condições de trabalho precárias.
Um relatório de 2024 da Nippon Anime and Film Culture Association apontou que os trabalhadores da indústria são sobrecarregados e mal remunerados – muitas vezes, ganham valores abaixo do salário mínimo japonês.
O especialista em anime e professor visitante da Universidade Waseda Roland Kelts diz que o atual cenário acaba pressionando os estúdios a investirem em IA. "A população está diminuindo, há poucos jovens artistas, e eles são mal pagos para realizarem trabalhos pesados", diz.
O estúdio K&K Design, por exemplo, já utiliza IA em suas produções com o projeto IA x Anime. Ele adaptou a tecnologia Stable Diffusion para auxiliar na coloração, criação de fundos e na conversão de fotos e vídeos em anime.
Profissionais utilizam prompts para que a inteligência artificial automatize processos, principalmente para preencher ações entre frames. O vice-presidente do estúdio, Hiroshi Kawakami, diz que isso economiza tempo e esforço.
Kawakami explica que um clipe de anime de cinco segundos, que antes exigia uma semana de trabalho manual, agora pode ser produzido num único dia, bastando fornecer dois desenhos ao modelo de IA.
Mas isso eleva ainda mais a pressão sobre os artistas japoneses, que já enfrentam o problema de salários reduzidos. Segundo pesquisa da Arts Workers Japan, cerca de 60% dos profissionais do setor no país temem perder seus empregos para a IA.
Kawakami defende que a tecnologia tem um papel de apoio e que não será capaz de substituir pessoas em áreas como julgamento e criatividade.
Os estúdios japoneses produzem diversos animes para a programação noturna da TV, e a IA hoje já ajuda na criação desse conteúdo, afirma Kelts, da Universidade Waseda. Para ele, isso não representa uma ameaça à criatividade no Japão.
Ele acredita que os japoneses não enxergam como algo ameaçador o fato de a IA poder criar sua própria versão do famoso anime One Piece, nos próximos anos.
"No xintoísmo, todas as coisas têm um 'kami', ou espírito… então os japoneses têm menos medo dessas ideias envolvendo robótica, IA e tecnologia – porque a tecnologia está entrelaçada com a natureza."
Hollywood também sente os impactos
A IA afeta cineastas no mundo inteiro, e muitos já passaram a incorporar a tecnologia em seus processos criativos.
O cineasta independente canadense Taylor Nixon-Smith, que pesquisa os impactos da IA no setor cinematográfico, afirmou que utiliza o ChatGPT para gerar listas de tarefas antes das filmagens, organizar pesquisas e rascunhar contratos operacionais – mas destaca que a maioria das tarefas exige intervenção humana.
"Ainda é preciso um figurinista para criar os modelos, compradores para adquirir materiais, costureiras para ajustar as roupas aos atores", exemplifica.
O ex-produtor da Disney e hoje professor de IA cinematográfica Charlie Fink avalia que a nova tecnologia levará a "uma nova era de ouro em Hollywood", com produções muito mais acessíveis, onde "se poderia fazer um filme com apenas alguns milhares de dólares."
Atualmente, os atores ainda ocupam o centro das produções, mas Fink acredita que as atuações por IA "vão mudar completamente nos próximos anos."
A ameaça já levou atores de Hollywood a entrarem em greve no ano passado, em protesto pela falta de proteções trabalhistas contra o uso dessas tecnologias.
O projeto de lei No Fakes Act, que combate réplicas não autorizadas feitas por IA, foi reapresentado no Congresso dos EUA no mês passado. A proposta conta com o apoio de grandes nomes do entretenimento, como Walt Disney, YouTube, SAG-AFTRA, entre outros — além da própria OpenAI, dona do ChatGPT.
Para Fink, no entanto, essa legislação representa apenas "o primeiro estágio do luto". Em sua visão, o avanço da IA é inevitável. Ele prevê que atores e produtores de fato poderão ser substituídos aos poucos.