Como a Estônia virou o primeiro país totalmente digitalizado

Como a Estônia virou o primeiro país totalmente digitalizado

"Talin,País báltico de 1,4 milhão de habitantes digitalizou todos os serviços governamentais, incluindo até mesmo pedidos de divórcio, tornando-se referência na Europa.Quanto tempo uma pessoa leva para se divorciar em seu país? Na Estônia, a primeira etapa do processo pode ser realizada em menos de um minuto, e a participação do cônjuge é desnecessária.

"Demora 45 segundos para chegar ao ponto em que diz para enviar o pedido de divórcio", explica Luukas Ilves, ex-diretor de informações do governo estoniano.

Ilves ocupou a função até o ano passado e disse à DW que o pedido de divórcio foi a última área da administração pública a ser digitalizada. Dessa forma, o pequeno estado báltico que faz fronteira com a Rússia é provavelmente o primeiro país totalmente digitalizado do mundo.

É claro que ambos os cônjuges devem consentir com o procedimento e estar fisicamente presentes em uma reunião que formaliza o fim do casamento, mas o pedido online facilita a burocracia. Desde o lançamento do serviço, em dezembro, cerca de 60% dos divórcios na Estônia são iniciados pela internet.

"Todos nós esperamos conveniência, simplicidade e segurança dos serviços digitais no setor privado. Por que os serviços governamentais deveriam ser diferentes?", disse Ilves.

Política de digitalização

Ilves é autor de um estudo recente intitulado "O Fim da Burocracia", que ele compilou em colaboração com a Friedrich-Naumann-Foundation, fundação política alemã ligada ao partido Partido Liberal Democrático (FDP). O relatório destaca as diferenças na política de digitalização e o que a Alemanha pode aprender com a Estônia.

Referência de burocracia excessiva e lentidão na digitalização, a Alemanha tem uma adesão relativamente baixa aos serviços online oferecidos pela administração pública: cerca de 62% dos habitantes recorrem a essas plataformas, enquanto a Estônia tem uma aceitação de mais de 90%, segundo o relatório.

O estudo destaca que 90% dos estonianos usam verificação eletrônica de identidade para acessar serviços governamentais, em comparação com menos de 10% dos alemães. A razão para essa discrepância é simples, afirma Ilves. O software estoniano é mais fácil de usar e oferece acesso a serviços dos setores público e privado, incluindo bancos.

Ilves disse à DW que, até alguns anos atrás, a Bélgica usava uma tecnologia de identidade eletrônica semelhante à da Alemanha. Mas o desempenho era ruim, com adesão de apenas 10% a 20% da população.

Porém, desde que os bancos e as operadoras de telecomunicações do país introduziram uma versão móvel de fácil utilização que permitia o acesso aos serviços do setor privado e do governo, a adoção da identidade eletrônica saltou para 80%.

A maior aceitação dos serviços administrativos digitais também ajuda a economizar dinheiro dos contribuintes, defende Ilves em seu relatório. O custo administrativo per capita da cobrança de impostos na Estônia, por exemplo, é um sexto do da Alemanha.

Desbravando a selva burocrática

Após as eleições gerais de fevereiro, o novo governo alemão do chanceler Friedrich Merz criou o Ministério da Digitalização e da Modernização do Estado. Seu objetivo é oferecer uma "gama abrangente de serviços para dar impulso, iniciar a cooperação e desenvolver soluções para a administração pública do futuro".

Representantes do setor digital receberam bem a decisão, como como Magdalena Zadara, chefe de equipe e estratégia do Serviço Digital Alemão, uma agência governamental que desenvolve e implementa softwares para digitalizar processos administrativos.

Em entrevista à DW, ela disse estar "otimista" com relação ao novo ministério porque ele busca digitalizar os serviços "de ponta a ponta", reduzindo assim as jornadas aparentemente intermináveis da burocracia alemã.

"Se eu quisesse vir para a Alemanha para trabalhar em um país fora da UE, teria que interagir com cerca de cinco a sete órgãos governamentais diferentes para obter a aprovação do meu diploma, e eles talvez até pedissem os mesmos dados."

Uma solução para o problema seria o chamado princípio da informação única de dados, usado na Estônia – cidadãos e empresas só precisam fornecer dados às autoridades públicas uma vez. Essas informações podem então ser reutilizadas e compartilhadas internamente por todas as autoridades.

O princípio é um dos pilares do governo digital na Estônia e está até mesmo descrito em lei.

Outra marca registrada da administração da Estônia é a assinatura digital, que é amplamente usada para assinar documentos como contratos de trabalho.

O empresário russo-estoniano Kirill Solovjov disse que usou a assinatura eletrônica pela primeira vez quando recebeu a e-residência estoniana em 2015 – uma identidade digital emitida pelo governo há 11 anos que dá aos empresários globais acesso remoto aos serviços administrativos do país.

"Na época, as assinaturas digitais também existiam na Rússia, mas nunca consegui passar pelo processo de verificação. Na Estônia, basta pegar o cartão [e-ID], conectá-lo e ele funciona – é mágico", disse à DW.

O "salto do tigre"

Os estados bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – reconquistaram sua independência da antiga União Soviética em 1991.

A primeira coisa que a Estônia fez na época foi levar internet e computadores a todas as salas de aula e bibliotecas por meio de um programa educacional chamado "Salto do Tigre".

Em 2000, o país de 1,4 milhão de habitantes fez outro grande avanço quando digitalizou as declarações de impostos, e as assinaturas eletrônicas foram reconhecidas como legalmente equivalentes às assinaturas em tinta.

Em 2015, todos os principais serviços públicos, incluindo serviços sociais e de saúde, foram totalmente digitalizados.

Dentre os novos serviços online, o favorito de Solovjov é o de prescrições digitais. Quando um médico prescreve um medicamento, ele é automaticamente enviado para o registro online e pode ser acessado em qualquer farmácia da Estônia e, agora, até mesmo da vizinha Finlândia.

"Basta retirar sua carteira de identidade… o farmacêutico vê exatamente o que foi prescrito e as diferentes opções que você tem. Não é preciso decifrar a caligrafia ilegível típica dos médicos. É fácil, seguro e rápido, além de não haver adulteração."

Reduzindo a dependência digital da Europa

A segurança online ainda é uma grande preocupação para os legisladores de outros países europeus e para a Comissão Europeia, em Bruxelas.

É por isso que o setor tecnológico europeu vem pedindo aos legisladores que reduzam a dependência da Europa dos gigantes tecnológicos americanos, como Google, Microsoft e Amazon. Eles advertiram o órgão executivo da União Europeia contra a diluição da Lei de Mercados Digitais (Digital Markets Act, lei que visa combater práticas anticompetitivas das big techs na Europa) como uma proteção contra o domínio dessas empresas.

Como atualmente 80% da tecnologia usada na Europa é importada, o setor tem pressionado por uma alternativa europeia para a soberania tecnológica. A maior aposta é a chamado EuroStack – uma "pilha" de componentes tecnológicos inter-relacionados, como hardware, software, protocolos de rede e infraestrutura, que, juntos, criam uma plataforma digital completa.

A EuroStack incluiria inteligência artificial soberana, ecossistemas de código aberto, supercomputação ecológica, dados comuns e uma nuvem soberana.

Luukas Ilves é cético em relação à iniciativa e adverte sobre os altos custos de oportunidade de "reinventar a roda" na digitalização, especialmente em aplicativos de ponta a ponta.

"Nenhum país pode ser autárquico e totalmente soberano no mundo digital. Na Estônia, nunca criamos uma 'pilha' de ponta a ponta para a Estônia, mas sim aplicativos e protocolos muito específicos sobre a pilha de tecnologia global", argumenta.